Crônicas

Quando a fábrica falhou

É assustador quando isso acontece. Nunca vivi uma situação onde a escassez de ideias me levaria a escrever um total de zero palavras em quatro meses. Não é falta de livros e filmes assistidos para escrever sobre, e muito menos falta sobre assuntos mundiais para escrever, a fábrica falhou nesses quatro meses. Talvez os meus neurônios ou o sistema responsável por me fazer escrever tenha resolvido entrar em greve geral.

Viver sob os holofotes de uma pandemia que parece não ter fim não ajuda. Está aí um assunto que poderia virar história, entretanto, as histórias que poderiam ser escritas se foram. Eu poderia colocar a culpa no tempo excessivo que passo nas mídias sociais, mas isso só destacaria a culpa em terceiros pela minha falta de comprometimento com o ofício.

Olhar uma página em branco nunca foi o problema, até hoje não é. Olhar uma fonte de ideias escassa é mais assustador que as páginas em branco, que só esperam as histórias baterem, gritarem, pularem dentro delas. Criar sempre foi uma terapia, uma atividade que consigo realizar com todo o comprometimento e prazer do mundo.

Nunca tive dificuldades em escrever um texto, escrever uma crônica ou um livro. Sim, quando eu lembro que eu já escrevi um livro minha cabeça entra em colapso: “querido, você deu vida a quase oitenta mil palavras durante um mês e meio, e não consegue escrever absolutamente nada?”

É, meu sistema criador que nunca vi, mas que está na minha cabeça, a fábrica falhou. Estou precisando daquela força para continuar com o maquinário e fazer as engrenagens serem o que eram antes, talvez uma versão melhorada. Um upgrade sempre é interessante.

Se para uma corrente de bicicleta há óleo para a mecânica funcionar melhor, o que temos para voltar a escrever? Aqui já tentamos de tudo, menos sentar e escrever. Essa é uma fase estranha, a pandemia é um fator que não cria ânimo em ninguém, mas não posso reclamar com o que tem me acontecido entre 2020 e 2021. Só faltou a pandemia se extinguir, mas ela continua nos segurando.

Acredito que até você, meu adorado leitor, está sentindo o resultado desses altos e baixos de viver sob as ordens de um vírus. Ainda mais se você mora no Brasil.

Não há atalhos quando criamos. Apenas saem coisas e sensações para tais criações que nem mesmo quem as faz sabe como conseguiram aquilo. Eu não sei como consegui escrever um livro do zero, com apenas o mínimo de conhecimento a partir das observações que eu fiz durante esses anos na leitura.

A fábrica secou e a situação beira ao desespero.

Se acontecer isso com um texto pequeno, como vou conseguir carregar novamente um livro nas costas. Admiro aqueles que conseguem escrever constantemente sem perder a beleza das ideias. Escrever é conversar comigo e decidir qual tema e palavras usar. Qual é a dificuldade em conversar comigo e extrair boas ideias?

Uma vez conheci um senhor que pescava diariamente no mesmo lugar quando morei em Florianópolis. Em dias a fio ele nunca tinha nada no isopor, só as iscas que preparava para o triunfo da manhã. O triunfo nem sempre aparecia, mas ele ficava sentado, olhando outros pescadores jogarem a tarrafa.

Ele sentia prazer pelo processo, mais do que pelo ato de pegar o peixe. Já o vi pegando alguns e é muito rápido. O prazer de pegar aqueles peixes passa muito rápido, quando a emoção começa, termina. A fábrica daquele senhor abre e fecha sempre. Ele nunca reclamava. Nem quando eu perguntava como foi a pesca e ele sorria “amanhã vai ter bons peixes”.

A fábrica dele se abria, mas não quando ele queria. Quando era para ser. A minha fábrica vai continuar fechada e vou esperar como? Sem ao menos tentar escrever meia dúzia de palavras? Escrever sobre uma fábrica de ideias fechada também é escrever. Depende de eu pegar os momentos de calmaria e transformar em história. Não é todo momento em que estarei na estrada pronto para escrever sobre o que aconteceu no dia.

A relação de momentos marcantes com a escrita não podem ser dependentes. Não se aventurar por alguns meses é motivo para não continuar escrevendo? Não precisa ser. Eventos externos ajudam a moldar novas ideias, mas conseguimos fazer com o que temos ao nosso redor. Até não ter ideias é um assunto interessante para se falar.

Minha fábrica falhou, mas posso começar a fazê-la funcionar com algumas não-ideias que tenho. Chorão já disse uma vez “dias de luta e dias de glória”. A glória é ilusória porque a luta sempre aparece em seguida, as duas se intercalam aleatoriamente.

Nunca sabemos quanto a glória dura, mas a sensação é que sua duração é pouca, assim como nunca sabemos quanto a luta dura, mas é uma sensação eterna.

Se a sua fábrica falhou, vamos dar as mãos. Acredito que merecemos ver as portas fechadas para, quem sabe, nos ajudar a reinventar tudo o que conhecemos. Quanto mais sério levamos a nossa arte, mais exigente ficamos e mais pressionados somos. Aquela pressão de você para você mesmo, um aperto sufocante que você se auto presenteia.

Imagino que no momento em que tomar a vacina e a engrenagem voltar a funcionar, as fábricas vão começar a reagir. Posso não funcionar na capacidade máxima, mas tem uma sala com uma mesa e cadeira que posso fazer operar gradualmente.

Não creio que estou sozinho nisso, mas não conheci outras pessoas que estão com a fábrica fechada. Estamos no mesmo barco, uma hora a engrenagem começa a rodar. Não sei quando. Minhas capacidades psíquicas em mensurar eventos aleatórios é falha, vou pelo pressentimento. Vou seguir o exemplo do pequeno pescador, sentar e ver. Vou confiar no processo de industrialização de novas ideias, talvez seja necessário trocar uma máquina ou outra para voltar a todo vapor.

É Chorão, parece que esses dias de luta ganharam a eternidade como companheira. Vou ver se a minha fábrica está com as luzes acesas pelo menos, começou a escurecer.

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One Reply to “Quando a fábrica falhou”

Eliana

Sempre me surpreende seus contos. Mesmo com a fábrica fechada você é inspirador. Suas idéias não se limitam a viagens e sim a acontecimentos.