
Bibliotecas construídas em malas de viagem.
As possibilidades de souvenirs para se comprar quando estamos viajando são infinitas. Há quem compre pequenos ímãs de lembrança, assim cada abertura da porta da geladeira traz um singelo momento de nostalgia. Há quem compre o café local para ter como lembrança, nas semanas seguintes da volta, um cheiro de memórias recém vividas. Outros vão além e levam esculturas enormes para darem vida ao hall de entrada com aquele par de cabeças do rei e da rainha mouras em cerâmica deslumbrante de Caltagirone. Uma obra de arte feita pelas mãos de artistas que aprenderam com seus pais e avós o ofício de ceramista. Outros apenas compram alguns livros, e nessa esfera me encaixo eu.
De todas as grandes viagens que fiz, onde fiquei mais de meio ano fora, tinha a certeza absoluta que uma nova coleção de livros viria comigo. Apenas pelo bel prazer de tê-los, de cuidá-los e poder conversar com o escritor em sua língua nativa – mesmo que dessa língua eu não saiba nada, mas o livro está ali.
Alguns minimalistas já me disseram “para que esse peso se um Kindle já foi feito para isso?”. Não tenho como não concordar com a premissa do Kindle, pois ele é sempre uma opção generosa de quantidade e facilidade para se ler livros em um pequeno dispositivo que perdura por anos. Uma tecnologia que necessita pouca ou nenhuma atualização. Eu mesmo carrego o meu junto com os seus conterrâneos da velha guarda com suas páginas, muitas vezes amareladas, pois são livros usados, e alguns de capa dura. Eles sabem o valor de cada um, não brigam por espaço, nem atenção, apenas querem coexistir e fazer parte da mesma mala.
Os livros que muitas vezes trago são escritos em outros idiomas, são livros difíceis de encontrar no Brasil, talvez pela versão e o desconhecimento do autor, são livros feitos para serem comercializados em seus países de origem. Quando esse momento chega e descubro as boas livrarias da cidade, a mão coça para pegar só mais um. Quando converso comigo e conto que ainda tem mais um apertado espaço dentro da mala, acredito na minha convicção, o espaço fazemos mudando a posição dos livros na mala. A forma de organizá-los é crucial para eu poder adicionar mais um colega de capa.
Jamais encontrei livros de Mario Mendoza, escritor colombiano, no Brasil. Digo a versão original de capa dura, com aqueles grafites pulando da capa dos livros e aquelas folhas macias recém-tiradas do forno. Para não deixar um livro do Mario sozinho na mala, fui “obrigado” a adotar seus irmãos e coloquei mais 5 ou seis livros do mesmo autor na mala. Assim a família estava quase completa.
A Colômbia me trouxe grandes e únicos livros, não apenas o contemporâneo Mario Mendoza com suas histórias policiais e suas impecáveis contribuições em quadrinhos, mas uma bela coleção de Gabo, o tal do Gabriel García Márquez, também fez parte dessa leva. Não sei o que esses livros conversavam entre si enquanto estavam na mala ou em alguma estante. Eu sentia um dever com a minha biblioteca pessoal de presenteá-la com livros de outros países, é tão natural quanto comprar alguns ímãs e presentes para minha mãe – um pecado em não fazer, não porque ela pede, mas porque me agrada vê-la receber esses mimos. Assim como minha mãe gosta, minha pequena biblioteca sente o mesmo prazer.
Não tenho uma quantidade máxima ou mínima, se couber no meu orçamento e na mala, está tudo certo. Já cheguei a carregar dezoito livros uma vez, e todos vieram comigo. Apenas uma vez tive uma triste despedida com um livro de Pablo Picasso que fui obrigado a deixar no aeroporto de Málaga. Me despedi de Málaga, da Espanha e de Picasso – tudo no mesmo dia.
O mais prazeroso é encontrar livros que jamais seriam encontrados senão naquele país. Livros publicados de forma independente são ainda mais valiosos, pois a tiragem é baixa, não se encontram em nenhuma loja e nem todos estão na internet. É uma joia. Um sentimento banal de que possivelmente sou o único brasileiro a ter um exemplar desse livro no Brasil. Um senso de exclusividade com um artefato relativamente barato, 20 euros, e pouco acessível. Tive o prazer de encontrar alguns como esse, livrarias como a Golem em Turim são a meca das publicações italianas independentes.
Eu os carrego, mas não terei tempo de ler todos naquele momento. Na verdade, eu devo ler menos da metade do que levo para a sua nova casa. Eles não são apenas amigos para todas as horas, mas investimentos a longo prazo. O sentimento de FOMO bate quando não sei quando será a próxima vez que voltarei àquela livraria ou até mesmo para aquela mesma cidade. Ou se aquela livraria vai estar naquele mesmo local, comercializando os mesmos livros. Mudanças acontecem, e quero poder relembrar toda a minha história não apenas pelo conteúdo dos livros, mas pelo momento em que tive a oportunidade de comprá-los. Os livros comprados nessas viagens são a maneira de me conectar com tudo o que já aconteceu, uma de muitas formas que eu tento manter as recordações vivas – outra forma é escrever alguns textos.
A memória daqui a uns dez, vinte anos pode falhar, mas quando eu bater o olho em um livro na minha estante ou ler, por exemplo, esse texto, vou ter a memória viva de tudo que aconteceu. É gostoso respirar a nostalgia e elencar as boas situações já vividas, apenas precisamos de um clique, um livro ou um texto para nos ajudar.
Todos os gêneros de livros são bem-vindos, ficção e não-ficção, clássicos e teatrais, prosa e quadrinhos, grandes e pequenos, novos e usados. Outro ponto é o idioma, assim como eu compro esses livros pensando em ler em algum momento da minha vida, quer seja nos próximos vinte dias ou dez anos; eu adiciono um livro de escritores de cada país em seu idioma. Tenho livro turco, israelense, albanês, iraniano, tailandês. São livros em seus idiomas que apenas têm o papel de conectar minhas memórias com aqueles momentos. Não tenho intenção de lê-los, mas não por negligenciá-los, mas puramente por não saber por onde e como começar. São os mimos que me autopresenteio.
Enquanto eu existir, viajar e ter a capacidade de leitura desenvolvida, vou “adotar” muitos livros pela frente. Dar a eles uma nova realidade com amigos do mundo inteiro. O espaço para os próximos já foi pensado, a mala sempre conta com essa premissa, a premissa de que viagem e livros andam de mãos dadas. Assim como o Kindle continuará a ser minha opção de comodidade e muitas vezes bons preços, os livros físicos são minhas histórias. Que bons escritores continuem a existir e publicar suas ideias e histórias. Vem aí minha coleção de livros russos e ucranianos, mas em cirílico.
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Fico sempre esperando novos textos para ler. Cada escrita uma surpresa boa. Até a próxima!!!!!
Coisa linda!