Pelo Mundo

Os gatos de Istambul

Há duas atrações em Istambul que dão um tempero especial à cidade: a primeira é o Bósforo, o estreito que liga o Mar Negro ao Mar de Mármara, e que também divide Istambul entre o Ocidente e o Oriente; a segunda atração são os felinos que habitam toda a cidade. Não há uma esquina ou rua onde esses animais não se encontrem pendurados. Já os vi em cima de carros, motos, vans, no parapeito de janelas, nas escadas e até vasculhando lixeiras. Eles são os vigias da cidade, mas também monumentos vivos, líquido, quase como se fossem dunas movendo-se em tempestades de areia no deserto.

Há uma escola perto de casa onde vivem mais de 12 gatos, e sempre aparecem alguns itinerantes, talvez primos distantes dos habitantes oficiais daquela zona. Geralmente, eles estão dormindo quando eu passo de manhã a caminho da academia, e continuam dormindo quando volto. No fim da tarde é quando saem do modo sono para o modo socialização – mas isso não é uma regra.

Fui investigar o motivo de haver tantos gatos nas ruas de Istambul. Encontrei poucas, mas boas explicações para esse fenômeno. Primeiramente, podemos considerar o aspecto religioso. Aparentemente, nas escrituras sagradas há menções de gatos, e essas histórias foram interpretadas de uma maneira que criaram um aspecto místico ao redor deles. Duas passagens ilustram essa importância dos gatos: Maomé cortou a manga de sua roupa quando precisou se levantar para as orações, para não incomodar um gato que havia se aninhado em sua veste para tirar uma soneca.

Em outra história, o gato de estimação de Abu Hurayrah (literalmente “pai do gatinho”) salvou Maomé de um ataque de uma serpente mortal. Supostamente, Maomé abençoou o gato em gratidão, dando aos felinos a habilidade de sempre caírem de pé. Os gatos eram considerados guardiões de outras formas no mundo islâmico: defendiam as bibliotecas da destruição por ratos e podem ter ajudado a proteger as populações urbanas das pragas transmitidas por esses roedores. Além de símbolos no mundo islâmico, os gatos também eram usados para limpar as cidades dos ratos.

Imagine qualquer cidade do século XIV, no eixo Europa Ocidental e Império Otomano. Agora, tire a beleza de Veneza, Paris, Istambul (Constantinopla), Roma, e imagine cidades sem tratamento de esgoto ou qualquer tipo de gerenciamento de resíduos – um ambiente perfeito para a proliferação de ratos. Soltem os gatos! Os ratos não só infestavam as imundícies das cidades, mas também consumiam papel, um material caro e escasso na época. E onde estavam esses papéis? Nos livros. Os ratos estavam destruindo a única fonte de informação disponível e uma valiosa propriedade intelectual. Podemos dizer que os gatos salvaram os manuscritos da humanidade.

Não apenas em Istambul, mas também em outras cidades sob forte influência islâmica, os gatos são sagrados. No livro Cats of Cairo: Egypt’s Enduring Legacy, Lorraine Chittock conta que, quando o orientalista britânico E.W. Lane viveu no Cairo na década de 1830, ele ficou surpreso ao ver um grande número de gatos reunidos todas as tardes no jardim do Tribunal Superior, onde as pessoas lhes traziam cestas cheias de comida. Disseram-lhe que essa tradição remonta ao governo do sultão mameluco al-Zahir Baybars, no século XIII. Esse monarca, amante dos gatos, criou um “jardim dos gatos” onde os felinos do Cairo encontrariam tudo o que precisassem. Ao longo do tempo, o local foi vendido, modificado e reconstruído, mas a lei exigia que a doação do sultão fosse mantida. E quem melhor para garantir isso do que o qadi (juiz)?

Em Istambul, os gatos pertencem a todos e a ninguém. A população local cuida deles com dedicação. Dê uma volta pela cidade no fim de semana, e você verá muitas pessoas com sacolinhas de ração, distribuindo comida entre os felinos. Já presenciei cenas dignas de filme: certa vez, vi o dono de um açougue alimentando cinco gatos com frango; em outra ocasião, uma gata nos apresentou seu filhote recém-nascido, um serzinho minúsculo, com um olho azul e pelagem branca, um verdadeiro mini deus. Pela cidade, há centenas de casinhas construídas exclusivamente para eles, uma medida para protegê-los durante os invernos rigorosos.

Em 2023, a cidade de Diyarbakır construiu 200 casas de madeira para os gatos de rua, colocando-as em prédios, locais de trabalho, jardins e parques, para oferecer abrigo durante a estação fria. A cidade também planeja iniciar uma oficina de marcenaria, incentivando os moradores a contribuir com a causa.

Não é só Istambul que tem essa boa fama; a estética da cidade parece até combinar com os gatos, como se fossem parte de sua beleza viva, um patrimônio em cada esquina. Se a cidade é o corpo, os gatos são as joias. Eles são os diamantes que caminham: inodoros, autolimpantes, verdadeiros pequenos aspiradores de pó que ajudam na manutenção da cidade.


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Uma cena curiosa que já presenciei foi ver um gato fazendo suas necessidades de maneira quase meticulosa: ele estava sentado em um buraco, fez o que precisava e cobriu os dejetos com folhas, utilizando as patas. Eles não deixam sujeira espalhada pela cidade. Um ditado popular diz: “Se você matar um gato, precisa construir uma mesquita para ser perdoado por Deus.”

O fator religioso, combinado com o jeito sorrateiro e afetuoso dos gatos, mantém esses felinos vivos e integrados à comunidade. Não é raro ouvir, no meio da madrugada, o lado pugilista deles. A “treta” corre solta com o cair da noite, e muita coisa acontece: alguns miados mais altos, talvez apostas entre os felinos para ver quem aguenta mais tempo no ringue; guerras por comida, pelo melhor lugar para dormir ou pela atenção da gatinha do bairro. Embora a lei proteja os gatos, ela não se aplica aos seus momentos de barulho. A impunidade reina, e no dia seguinte, continuamos a brincar com eles nas ruas.

Como não sabemos quem são os culpados, não há condenados. Os gatos não são exclusividade de Istambul, mas aqui eles são apresentados como parte integrante da cidade. Formam sua própria entidade. Se olharmos sob uma perspectiva divina, todos os gatos são descendentes de Bastet, a deusa egípcia com cabeça de gato, também conhecida como a deusa da fertilidade e do lar, símbolo de proteção. No antigo Egito, os gatos eram altamente reverenciados, em parte devido à sua habilidade de combater pragas como ratos, camundongos (que ameaçavam os suprimentos de alimentos) e cobras.

Em alguns casos, os gatos da realeza eram adornados com jóias de ouro e tinham permissão para comer diretamente dos pratos de seus donos. Dennis C. Turner e Patrick Bateson, em seu livro The Domestic Cat: The Biology of Its Behaviour, estimam que, durante a Vigésima Segunda Dinastia (c. 945–715 a.C.), o culto a Bastet evoluiu de uma divindade leoa para uma importante deusa-gato. Como os gatos domésticos tendem a ser afetuosos e protetores com suas crias, Bastet também era vista como uma boa mãe e, muitas vezes, era retratada com vários gatinhos.

A adoração pelos gatos não aconteceu de um dia para o outro. Atravessando séculos, civilizações e culturas, esses felinos misteriosos sempre foram vistos como algo além de simples animais. Já no Japão, o “Maneki-neko” levanta sua pata como quem saúda a sorte e a prosperidade. E, mesmo em tempos sombrios na Europa Medieval, quando os gatos foram injustamente associados à bruxaria, sua resiliência os manteve firmes, até que a humanidade reconhecesse novamente seu valor.

Em Istambul, eles são parte integrante da cidade, uma extensão viva de suas ruas e esquinas. De certa forma, é como se fôssemos seus servos silenciosos, zelando por suas vidas com devoção. Quem mais poderia ser cuidado por estranhos, receber comida, carinho e abrigo sem pedir nada em troca? Talvez, em sua quietude e independência, os gatos nos ensinem algo sobre liberdade e mistério. São seres que andam entre o sagrado e o mundano, lembrando-nos de que, mesmo em uma cidade caótica, ainda há espaço para a veneração do simples e do belo.

Talvez, afinal, não seja apenas uma questão de estarmos mais próximos deles; pode ser que, desde os tempos imemoriais, sejam eles que nos aproximam de algo maior, algo que ultrapassa o cotidiano e nos conecta com um senso mais profundo de respeito e admiração pela natureza.

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2 Replies to “Os gatos de Istambul”

Eliana Rejane Lemos

Cada texto uma surpresa. Tirou minha dúvida sobre tantos felinos espalhados pela cidade. Istambul tem suas particularidades e nada melhor como explora-la.

Pedro Dalmolin

Eles são os mais queridos dos queridos!