A arena estava aberta; já havia pouco mais de duas horas que estávamos em território italiano. Havíamos conversado brevemente com o responsável pelo ponto de informações no aeroporto de Milão, com o cobrador e o motorista do ônibus que nos levou do mesmo aeroporto até a estação central de Torino. Passaram-se pouco mais de duas horas. Em uma estadia de dois meses, possivelmente esperávamos conhecer relativamente bem a cultura local, sua arquitetura, quem foram as personalidades históricas que transformaram a cidade. Também esperávamos descobrir onde comer, onde comer bem, quais são as ruas mais bonitas e as ruas mais movimentadas. Quem são os escritores locais. Como funciona a economia da cidade. E como são as margens do rio que a corta – uma cidade influente na Europa sempre tem um rio que a atravessa.
Também esperava conhecer pessoas, criar um relacionamento com algum nível de intimidade. Minhas expectativas não eram altas, como criar laços de amizade que durariam a vida inteira. Foram poucos os momentos em minhas viagens em que fiz amizades para a vida. Essas pessoas são levadas comigo como joias preciosas, que, em nenhuma hipótese, conseguiria viver sem. Elas foram frutos de um árduo trabalho de imersão cultural e conexão.
Entretanto, como eu conhecia o outro lado, onde a dificuldade de fazer grandes amizades depende de fatores que não estão sob meu controle, como, por exemplo, a cultura que permeia os relacionamentos – há países nos quais se demoram anos para construir uma amizade e outros onde, na segunda semana, você é chamado para o casamento da irmã. O que está sob o meu controle é sair de casa e encontrar pessoas, porque nunca conheci gente que viesse à nossa porta e dissesse “vamos ser amigos?”. É preciso criar contextos.
Esse texto é dedicado a essas pessoas. Vou preservar os nomes, pois esses quero manter para mim. Com vocês, quero compartilhar um contexto. Quase um miniconto sobre a minha (quase) galera.
A menina da recepção
Minha “quase” amiga foi a menina da recepção do centro de escalada de Torino (SASP). No primeiro dia, a Isis foi comigo para conhecer esse lugar. A menina se mostrou competente e entusiasmada em passar as informações e mostrar a academia que, pasmem, era um lugar maravilhoso, um sonho para quem faz escalada indoor.
Pergunta vai, pergunta vem, e ela nos perguntou se estávamos a trabalho ou turismo – não é todo domingo que aparece um casal de brasileiros interessados em mais detalhes sobre a academia. A resposta: um mix dos dois, trabalhamos remotamente, mas também estamos aqui para conhecer a cidade e a região. Ela se mostrou interessada, não no aspecto turístico da nossa estadia, mas sim em como fazíamos para trabalhar remotamente. Contei um pouco sobre mim, a Isis contou um pouco sobre ela, e ficamos de passar alguns sites sobre vagas de trabalho remoto. Trocamos contato e fomos embora. Disse para a Isis: “Fizemos a nossa primeira amizade, no primeiro dia. Vamos ter uma chuva de amigos”.
Alguns dias depois, mandamos mensagem para ela, conversamos um pouco com a menina da recepção, mas foi isso. E também nunca mais a encontrei na academia; aparentemente, os horários dela e os meus eram diferentes. Ajustamos as nossas expectativas, porque talvez fazer amizades para a vida não fosse possível, mas eu pretendia ter poucos, mas bons quase-amigos.
Escalador #1
Meu segundo quase-amigo era um companheiro de escalada. Um dos primeiros a chegar no ginásio, assim como eu. Compartilhamos algumas paredes, ele se apresentou em italiano, e eu respondi na mesma língua. Conversamos por alguns minutos antes da nossa sessão e nos tornamos uma espécie de bons amigos de escalada, estimulando um ao outro.
Talvez tivéssemos a mesma idade. Era um ragazzo também de cabelos longos, porém loiro, com o mesmo nível de escalada que eu – baixo. Presenciamos a evolução um do outro nas poucas semanas em que escalamos juntos. Ali, compartilhamos treinos e maneiras de completar os percursos. Ele também era mais dos percursos, onde o atleta treina resistência, geralmente saindo do ponto A ao B nas mesmas agarras, do que de boulder, que é mais parecido com um quebra-cabeça, onde o desafio é decifrar como completá-lo.
Passávamos mais tempo em treinos separados, cada um com sua rotina no templo, mas trocávamos ideias sobre ir além nesse esporte, onde o sofrimento está presente em cada agarra. Meu quase-amigo, em algum momento, deixou de ir à escalada. Nunca trocamos contato. Ele, por algum motivo, não apareceu mais, talvez tenha trocado de horário ou mudado de cidade. Segui minha rotina como fazia todas as manhãs, nas quais era o primeiro a chegar.
Músico de jazz
Nossa quase-amizade se deu por indicação de uma amiga. Ela nos disse que não era uma opção ir para Turim sem conhecer o piemontês mais doce de… Piemonte. Ele era de uma pequena cidade nos arredores de Turim, e isso fazia toda a diferença; por isso, ele não se considerava um torinese. Seu instrumento era o trompete.
Descobrimos que ele e sua banda iriam se apresentar na semana seguinte, em um evento de jazz que estava acontecendo na cidade. Fomos, assistimos à banda, o vimos de longe – parecíamos dois paparazzi à espreita, tentando um melhor ângulo para captar a foto do ano. Flash. A chuva chegou, o show aconteceu, a banda terminou e a noite subiu. Nosso querido desconhecido conversava com um monte de estranhos – todos eram estranhos para nós, afinal, é uma questão de perspectiva. Ele ficou sozinho por dois segundos e o abordamos. “Ciao. Mi chiamo… e lei si chiama… e temos uma amiga em comum, a L”.
Ele ficou meio sem jeito no primeiro momento. No segundo, caiu a ficha. No terceiro, já éramos bons quase-amigos. Ele tirou da cartola a simpatia sobre a qual nos haviam falado. Conversamos por trinta minutos. Ele nos contou um pouco sobre sua cidade natal, seu ofício como músico, e sobre a banda. Nos deu um breve roteiro do que deveríamos ver na cidade e ao redor. Tínhamos certeza de que teríamos um amigo italiano e jantaríamos na casa de sua nonna.
Que reviravolta. Depois de alguns dias, mandamos uma mensagem para ele para combinar um café ou aperitivo. Infelizmente, fizemos outro quase-amigo, cuja relação ficou por ali mesmo, mas ficamos contentes por ter conhecido a alma de um trompetista.
O dono da enoteca
O senhor F. nos acolheu como cliente quando andávamos vagando pelo nosso bairro, Santa Rita. Era tudo novidade. Faziam duas semanas que estávamos ali e o modo adaptação chegava ao fim. Já conhecíamos as linhas do transporte público, a feira, quais mercados ir, os parques ao redor, as padarias e os restaurantes.
Era o nosso bairro. Entramos na enoteca do senhor F. porque o estabelecimento ao qual pretendíamos ir precisava de reserva, e o senhor F., com alguma pena de nós, dois estrangeiros, nos ofereceu uma mesa e duas cadeiras. A garçonete tirou nosso pedido: um Aperol Spritz e um Negroni. Para acompanhar, batatinhas e azeitonas. O Aperol chegou certo, o Negroni veio errado (um tal de Aperol à Provenzale ou Aperol Hugo). Um ótimo drink. Dos lugares que fomos em Turim, lá foi um dos únicos onde o dono puxou assunto conosco.
A garçonete quis saber sobre nós e o que fazíamos. O ambiente era agradável e a comida boa. Na segunda vez que fomos, pedimos a focaccia. Foi com a focaccia que decidimos fincar a bandeira como o nosso lugar especial em Turim. Sabe amigo de bar? O senhor F. era o nosso amigo de enoteca, um bar de vinhos e algumas boas comidas locais. Ele nos deu indicações de onde ir ao redor de Turim e quais cidades visitar. Anotamos e fomos em um final de semana a uma delas. Uma vez por semana fazíamos nossa parada oficial, geralmente na sexta-feira. Ele era um bom homem com todos os fregueses. Foi em sua enoteca onde presenciamos nossa primeira briga de um casal italiano. Um bafafá só. Ele e os funcionários já eram nossos quase-amigos, uma relação que já era esperada.
O pedido era sempre o mesmo, nossa hora nunca mudava, o ambiente era impecável, até quando o senhor F. fazia tudo sozinho devido à ausência imprevista de algum funcionário. Eles faziam tanto com tão pouca gente, era admirável! Nosso mais difícil adeus foi com o nosso quase-amigo senhor F. e sua enoteca. Dizer adeus a ele significava que a realidade de irmos embora havia chegado. E chega para todos.
Escalador #2
Fiz amizade com o escalador #2, um rapaz baixo, magro, com a estrutura típica de um escalador, e extremamente forte. Um homenzinho com destreza em cada movimento; não hesitava, não errava e, aparentemente, nunca se cansava. Ele se desenvolvia com maestria nas menores agarras, que sinalizam um grau de dificuldade maior.
Nosso encontro se deu por acaso na academia. Conheci-o enquanto conversava com o escalador #1. Nós dois observávamos aquele trabalho de movimentação com admiração. Depois que o escalador #2 desceu da parede, eu lhe disse que o que ele fazia era o meu objetivo. Nós três conversamos um pouco; o escalador mais experiente nos deu dicas valiosas e nos mostrou como se portar com seriedade na parede, sem desgastar energia desnecessariamente.
Levo suas dicas comigo em todas as sessões de escalada desde então. Ele aparecia uma ou duas vezes por semana no templo, e era sempre um prazer poder desfrutar daquele momento com o meu outro quase-amigo. Um craque na escalada. Sempre que ele aparecia, conversávamos sobre tudo: minha experiência na Itália e em Turim, escalada e suas modalidades e, especialmente, sobre escalada em rocha, onde se enfrenta o real desafio da montanha. A vida real. Meu quase-amigo era como um general do século XVI que você olha de longe e pensa: “Esse cara sabe alguma coisa interessante.” Ele seria o Keanu Reeves da escalada – ele simplesmente faz.
E faz bem. Desse quase-amigo consegui me despedir. Tenho o seu Instagram e espero encontrá-lo nas Dolomitas, um lugar sobre o qual conversamos bastante
O nonno
Tivemos a chance de transformar um senhor italiano em nonno, avô na língua de Dante. Fomos de trem para Verbania, nas margens do Lago Maggiore, uma cidade bela e com uma história interessante. O trem parou na estação Verbania-Stresa, o que nos deu a impressão de que seríamos deixados em algum ponto central de Verbania. Abrimos o Google Maps. Distância: 7 km. Nenhum sinal de ônibus para nos levar até o destino final. Do lado de fora da estação de trem, havia um senhor, e como ele era a única alma ali, perguntei como fazíamos para chegar ao centro de Verbania.
Ele também não sabia, pois estava visitando um amigo que iria buscá-lo. Conversamos um pouco sobre a Itália, civilizações europeias, o Brasil, música, sobre um pouco de tudo. O amigo dele se atrasou para buscá-lo porque não ouviu o despertador. Éramos só nós três ali. Ele disse: “Quando meu amigo chegar, pergunto se ele pode deixá-los em Verbania,” já que era o nosso destino comum. Finalmente, seu amigo chegou, nos deu a tão doce carona até o centro da cidade, e contou a história dos Tupinambás do Brasil em detalhes durante os 7 km – ele era sociólogo e conhecia muito bem pontos da nossa história que eu nunca havia escutado. Uma bela aula de Brasil em italiano.
Quando chegamos ao nosso ponto, nos despedimos, e eis que o nosso nonno me entrega um papel com seu número de telefone, pedindo que, quando fossemos a Milão, ligássemos para ele. Convertê-lo em nonno foi nossa própria classificação. No dia seguinte, mandamos uma mensagem agradecendo com algumas fotos nossas; ele agradeceu e foi muito gentil conosco. Quando fomos para Milão, enviamos outra mensagem, mas durante quatro dias não houve resposta.
Até que, em nosso último dia, um domingo, às 8 horas da manhã, recebi uma ligação dele. O nonno não se esqueceu de seus queridos netos. Pediu desculpas pela demora e disse que, infelizmente, não estava em Milão, mas nos deu dicas valiosas do que ver na cidade. Foram 20 minutos de ligação para relembrar o quão querido ele era. Nos despedimos e, novamente, enviei algumas fotos que tiramos. Esse foi o nosso último contato com o nonno R..
A voluntária na igreja de São Maurício
Essa igreja foi uma recomendação do nonno R: “Vocês devem ir lá, é preciosa, é a Cappella Sistina de Milão”. Fomos, e havia poucas pessoas, além de um grupo de voluntários da Touring Club Italiano, que estavam ali para mostrar um pouco da igreja. Essa instituição cuida dos patrimônios italianos; são guardiões de muitos outros lugares históricos que merecem ser preservados.
Foi nesse encontro que conhecemos nossa última quase-amiga. Perguntamos sobre a igreja, e ela nos contou a história dos pontos que conhecia. Os afrescos eram impressionantes, pintados por Bernardino Luini, que circulava no mesmo círculo de amigos que Leonardo da Vinci. Para nossa surpresa, nossa quase-amiga foi além das explicações sobre a igreja, que também já foi um monastério, e chegamos ao Brasil. Ela nos contou sobre sua relação com o nosso país, de suas amizades, conhecia Belo Horizonte e outros lugares, arranhava um pouco de português, perguntou o que fazíamos na Itália; foi uma chiacchierata de vinte e poucos minutos. Ela foi incrível conosco: não eram muitos os italianos que puxavam assunto com essa magnitude. Fizemos nossa contribuição para o trabalho deles e partimos.
Os quase-amigos foram tão importantes quanto os bons amigos que poderíamos ter tido. O mérito deles foi tão nobre quanto o de um amigo: nos ajudaram, de alguma forma, a nos inserir na comunidade italiana, mesmo sem estarem cientes disso. Foram fragmentos que, somados à nossa história em Turim e região, fizeram parte da nossa quase-família italiana.
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