A guerra, na qual cada soldado é invisível aos olhos do inimigo, não invisível fisicamente, mas em sua essência como ser humano que cada pessoa carrega. O vazio interno de cada pessoa morta em batalha não tem nome e sobrenome, e sim um número que cai nas estatísticas de baixas.
E por qual motivo?
Ali, na trincheira, atira-se no pai de família que não vê a hora de voltar para casa e curtir o verão com os filhos. A guerra é um massacre de homens que não se conhecem em benefício de outros que se conhecem, mas não se massacram, como já disse o filósofo francês Paul Valéry.
Depois de um ataque dos alemães contra o exército inglês na costa do Adriático, área conhecida como Linha Gótica, que passava pelos Apeninos e a região de Carrara e La Spezia, terminando a leste, na região de Rimini, o médico da brigada foi chamado para examinar os feridos.
O médico no momento era o Dr. Vincent Durand, que vem de uma família da classe médica de Marselha, no sul da França, e foi designado para ser o médico-chefe da região de Bolonha, na Itália, cidade onde residia a base do exército. Por ser um estudioso das línguas, além do francês, ele tinha fluência em inglês e italiano.
Durante três dias de trabalho, a 50 km de Rimini, reconhecendo os corpos do exército inglês e italiano e cuidando dos feridos, ele já não aguentava mais anotar nomes e números na prancheta daquelas pessoas que lutaram e perderam suas vidas por motivos que muitas vezes nem eles entendiam. Durand era completamente contra a guerra, mas ele sabia que, como médico e humanista, não poderia deixar uma alma jogada aos escombros precisando dos seus cuidados. Na faculdade de medicina, ele jurou cuidar de qualquer pessoa que precisasse dos seus cuidados e conhecimentos.
Ele não pretendia falhar, mesmo não concordando com o que acontecia naquela primavera de 1944.
— Durand, precisamos levar os feridos rapidamente para a base em Bolonha. Estou providenciando transporte para sair em 40 minutos. Sua equipe está pronta para recebê-los no centro médico? — questionou o capitão responsável por aquele batalhão com seriedade e pressa.
— Eu vim preparado para o pior e deixei toda a equipe médica de prontidão e todas as ferramentas organizadas para receber os feridos, mesmo não sabendo o tamanho da proporção do desastre.
— Não foram tantos dessa vez, poderia ter sido pior, mas eles precisam se recuperar o mais rápido possível. Temos 53 feridos, sendo 9 em estado grave.
— Não me interessa se poderia ter sido pior ou não. Se eu precisasse me deslocar para tratar de três pessoas, já seria o suficiente. O cenário ideal é ter zero feridos por causa da guerra, e melhor ainda é se ela não existisse. Como médico, jamais deixarei ninguém sem cuidado — Indignado com o capitão se referindo aos feridos e à situação, Durand teve repulsa por aquele momento.
— Você e os seus ideais… um dia vai acabar morto por causa disso — o tom de deboche do capitão não abalou o médico, pois ele já havia ouvido isso em outras ocasiões.
Depois de todo o trabalho de acolhimento e cuidado com os feridos no campo, era hora de voltar para a base. Ele voltou sozinho de carro, da mesma maneira que tinha ido, pois conhecia aquela região na palma da sua mão. Seu avô, italiano nascido em Florença, sempre levava os netos para passar o verão na costa do Adriático.
No caminho de volta, a 30 km do ponto em que haviam checado os feridos na batalha, ele encontrou um soldado jogado a 100 metros da estrada principal que ligava Rimini e Bolonha. Na hora, ele freou e encostou o jipe no acostamento. Em questão de minutos, ele estava ao lado daquele soldado que vestia o uniforme italiano.
— Como você veio parar aqui? — questionou o médico, em italiano, assustado com aquela situação.
— I’m covered in pain… help me — resmungava o soldado ferido.
Durand não entendeu o motivo dele ter respondido em inglês, mas o soldado em questão estava ferido na coxa direita em decorrência de um tiro e estava com o braço esquerdo quebrado, certamente ele caiu de algum penhasco, pensou o médico.
No calor do momento, Durand segurou o soldado com agilidade e cuidado pelo braço intacto e o carregou até o jipe. Por ter percebido a desidratação do soldado, ofereceu seu cantil de água. Ele nunca havia visto alguém acabar com meio litro de água tão rápido.
Após o soldado ter voltado a ter um pouco de consciência, Durand disse que era melhor eles correrem até a base, pois ali ele seria medicado de acordo. Quando o médico falou aquilo, o semblante do ferido mudou na hora. Ele repetia: “I can’t… I can’t… they’re gonna kill me!” e o desespero na cara dele ficava nítido a cada palavra. Naquele momento, Durand viu o desespero de um homem sozinho no meio do caos.
Se Durand fosse descoberto por prestar assistência ao inimigo, seria excomungado ou até morto, mas ele não podia deixar aquele coitado nas condições presentes. Ele sabia que aquele rapaz, com seus 28 anos, era apenas um fantoche no meio de milhares que morrem todos os dias.
A ideia para tratar dele era colocá-lo no quarto do médico, mas para isso acontecer, ele precisaria ficar de boca calada. A vantagem de morar em Bolonha era que o carro parava a 20 metros da moradia de Vincent Durand, mas sempre havia gente passando por lá.
— Escute o que eu vou te falar. Não posso deixar você morrer sozinho aqui, mas preciso que você coopere comigo, só assim você terá uma chance. Entendeu? — Durand foi bem claro com suas palavras e a conversa entre os dois foi em inglês a partir daquele momento.
— Estou com muita dor… me leva de uma vez ou coloca uma bala na minha cabeça.
Durante a viagem, que durou 45 minutos até a base militar de Bolonha, Vincent Durand deixou bem claro para ele não abrir a boca. Se alguém ouvisse aquele soldado falar inglês com sotaque em alemão, ele já era. O que o médico faria depois ainda não havia sido pensado.
O jipe parou na porta da residência do médico e ambos desceram com cautela e desconfiança. Por estar anoitecendo, as pessoas voltavam para suas casas e não havia ninguém na rua. Sorte de ambos. O médico carregou o ferido até sua casa, que ficava em um complexo de prédios de 4 andares. Seu apartamento se localizava no segundo andar, no número 29.
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Seguindo ordem do Ministro da Saúde, em um raio de 500 metros, deveriam existir pequenas enfermarias caso acontecesse algum ataque e caso as pessoas precisassem de socorro. Esses pequenos centros de cuidados ajudariam como suporte naquele momento. Por coincidência, no prédio do Vincent havia uma dessas enfermarias equipada com tudo o que ele precisava para cuidar do soldado ferido.
— Qual o seu nome? — perguntou ofegante ao soldado.
— Me chame de Klaus — agonizando de dor após subir os dois andares.
— Ok, Klaus… fica aqui por um instante que vou descer na enfermaria no térreo para buscar morfina e outras coisas. Não faça barulho, as pessoas já estão em toque de recolher.
Klaus ficou sentado na poltrona verde-escura na sala da casa enquanto esperava o médico. Nesse instante, ele olhou ao seu redor e deparou-se com a foto da família de Vincent perto da vitrola e dezenas de discos de música clássica de artistas alemães e austríacos.
Na enfermaria, o doutor encontrou tudo o que precisava para manter aquele soldado vivo. Pegou morfina, soro fisiológico, gases e bandagens, sulfanilamida em caso de infecção, aspirina e pinça. Pela experiência do médico, aquele seria um caso fácil de resolver, a única parte que não era fácil seria manter um soldado alemão ali por muito tempo.
No corredor de volta ao apartamento 29, não se ouvia nada. As pessoas estavam tão quietas naquele dia que parecia que o mundo ficou em silêncio. O som do vento batendo na janela no final do corredor era o que dava vida naquele momento. Tudo era muito cinza e sem cor naquela situação.
Já na casa, Vincent colocou o alemão deitado no colchão reserva que tinha no quarto. Preparou um leito e começou o tratamento para mantê-lo vivo.
— Primeiro, vou aplicar morfina para aliviar a dor. Preciso que você não grite e não faça nenhum barulho — foi pragmático o médico.
— A morfina eu aguento, o que vai acontecer depois? Meu braço direito está destruído, e minha perna esquerda é carne viva decorrente de uma explosão.
— Vou aplicar sulfanilamida na sua perna, se houver infecção de alguma bactéria. E aqui tem algumas aspirinas para amanhã.
O médico foi todo cuidadoso com o paciente. Ele tratou Klaus como se tratasse de uma criança. Talvez ele não devesse fazer isso por questões militares, mas ele jurou nunca abandonar ninguém que precisasse dele. A medicina o fazia se aproximar da pessoa que ele queria se tornar, alguém que devolve a vida para uma pessoa, que devolve toda a esperança para um ser. Não importava para ele se fosse um soldado alemão, um índio brasileiro ou uma criança árabe. Todos teriam a sua atenção.
Após 2 horas de procedimento, o soldado adormeceu em decorrência dos remédios e do estresse causado pela guerra. Foi então que Vincent resolveu parar e descansar um pouco na cama.
Quando os primeiros raios de sol entraram pela janela, Vincent levantou e mal percebeu que havia dormido por horas a fio. Ele se levantou rapidamente para verificar o paciente e seu estado. Como o médico esperava, o soldado ficou exposto ao sol com um ferimento causado por explosivo durante três dias. Klaus estava com febre em decorrência de tudo o que havia passado.
— Pelo jeito as coisas pioraram durante a noite, você está sentindo dor? — perguntou ao alemão calmamente.
— Não senti nada, a morfina funcionou e tomei duas aspirinas no meio da noite. Aliás, qual é o nome da pessoa que me salvou? Você não se apresentou — tremia o soldado.
— Vincent.
— Obrigado, Vincent. Para não ser capturado como prisioneiro, encontrei o corpo de um soldado italiano e vesti o seu uniforme. Você foi a primeira pessoa que me viu depois do ataque. Eu estava com muito medo e fiquei desesperado na hora. A dez metros de mim, caiu uma bomba que matou dois do meu batalhão e quase arrancou minha perna. Essa foi a primeira vez que estive na linha de frente. Espero que seja a última também.
— Você não acredita no que está acontecendo? Vocês alemães têm fama de não deixar nenhum sobrevivente quando estão no campo.
— Pura besteira! Eu odeio tudo o que está acontecendo. A casa dos meus avós foi bombardeada nos arredores de Berlim e não tenho notícias dos meus filhos e da minha esposa. Eu só queria estar com eles. Eu não tive escolha em estar aqui, neste inferno na terra.
— Então, temos algo em comum. Nada disso faz sentido. Pessoas morrem todos os dias lutando e matando outras que não sabem o que estão fazendo na vida, enquanto líderes egocêntricos criam estratégias para dominar outro país. Tudo à custa de pessoas como você e eu, pessoas que não ganham nada com a guerra. Eu faço o meu trabalho como médico e isso inclui qualquer pessoa que precise das minhas habilidades.
— Vi na parede que o senhor tem família. Sente falta deles?
— Todos os dias, Klaus. Não vejo a hora de encontrá-los — o médico ficou pensativo enquanto examinava o alemão.
— Deixa eu mostrar para você a minha — tirou do bolso da jaqueta que estava ao seu lado um colar de ouro com um pingente em forma de pentágono que abria como se fosse um livro, mas que continha a foto dos dois filhos do alemão e sua esposa.
— Bonita a família — sorriu por ter visto algo que o alegrasse durante aquele tempo. Todos os que estão no campo têm alguém que os espera.
— Nem todos são más pessoas. Nem todos querem estar ali. Na verdade, vejo que apenas os lunáticos querem carregar armas e atirar em pessoas. O que eu sonho todos os dias é passar o verão com meus filhos nos lagos ao sul da Alemanha — ele tremia por conta de alguma infecção que pegou nesses três dias de peregrinação.
— A guerra é um massacre de pessoas que não se conhecem em benefício de outros que se conhecem, mas não se massacram — citou essa frase para o alemão enquanto terminava de alimentar o rapaz com sopa de abóbora que havia congelado antes de ir para o campo resgatar os feridos.
— Boa sopa… exato, eu espero ver minha família o mais rápido possível e desejo que você esteja onde sempre desejou. O mundo precisa de médicos como você, que levam a profissão acima de qualquer interesse, a não ser pela vida — suando e tremendo para falar, Klaus começou a mostrar sinais de piora durante aquela manhã e pela tarde, enquanto descansava.
A conversa entre os dois continuou quando o alemão despertou no final da tarde daquele dia. Ele havia tomado outros medicamentos para parar a febre e dormia muito. Devido a um pico de dor insuportável que ele sentiu, o médico aplicou uma segunda dose de morfina.
Naquela noite, Vincent Durand sabia que o alemão não iria resistir aos ferimentos. Culpa de alguma infecção que ele contraiu durante a guerra, não havia mais o que fazer a não ser confortá-lo.
— Você foi um bom homem, rapaz. Você é um bom pai. Em tempos de guerra, é muito difícil separar quem é bom e quem é ruim. Pois, aos olhos do inimigo, todos são pessoas horríveis, exceto os que pensam como ele.
— Pois é, Vincent, eu não passo dessa noite… minha febre só aumenta e não vejo sinais de melhora… eu sei que você está ciente disso… quero te entregar algo… fique com esse colar e se você for para Freiburg um dia, depois que a guerra terminar, quero que entregue para minha mulher e diga que estou cuidando deles de outra forma.
— Verei o que posso fazer.
Naquela noite, Klaus faleceu devido a uma guerra que não era dele, um homem puro em sua essência, mas apodrecido por uma política que degradou uma nação. Ele nada mais era do que um ser invisível aos olhos narcisistas de líderes em busca de poder. Um poder que tem um preço elevado. Um preço pago por sangue e nenhuma glória. Um preço pago por milhões de Klaus.
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do Stephen Tomic
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