Um mês em Barcelona aprimorando meus estudos em pintura a óleo com um grupo de pintores de todos os cantos do mundo a convite do figurão moderno Ricardo Dali, que diz ter parentesco com Salvador Dali. Parente ou não, ele tinha talento de sobra para mostrar para o seu tio, ou qualquer que fosse o grau de familiaridade. Algumas pinturas que fazia qualquer leilão da Sotheby’s ver os interessados brigarem por um pedaço de tinta com o seu nome.
Dizem que ele vendeu um quadro por 2 milhões de dólares e apostou todo esse dinheiro em uma mina de ouro que um amigo disse ser o investimento mais lucrativo do século XXI. O prejuízo foi tanto que ele acabou passando três dias sendo interrogado pela Interpol. Aparentemente, esse “amigo” fraudou várias licitações em uma suposta mina de ouro nas Filipinas. Seu nome estava em alguns papéis e ele era suspeito de primeira. Ninguém nunca ouviu falar nesse tal “amigo” e ele foi solto. A surpresa foi que os 2 milhões haviam sumido. Azar de alguns, sorte do novo dono do quadro, com essa história a obra deve estar valendo cinco vezes mais.
Esse mês em Barcelona foi intenso. Eu deveria ter voltado para o Brasil dois dias depois do curso, mas resolvi adiar e viajar pela Espanha por algumas semanas. Eu já hablo muy bien español, então isso não era mais um empecilho.
Ápice do verão europeu, o que eu ainda queria era sentar na praia.
Hasta luego, Barcelona!
Buenos días, Málaga!
Do extremo norte do país para o extremo sul, minha intenção era começar por Málaga, alugar um carro e ir até Barcelona de volta. Meu voo devia sair de lá.
Andaluzia era um lugar que me agradava muito. Eu sentia que ali era uma parte um tanto tradicional da Espanha. Até o espanhol que eu sabia ali não me ajudava muito. O andaluz consegue comer metade das palavras quando ditas. Imagine eu no meio de um grupo de senhores nativos andaluzes, provavelmente entenderia a mesma coisa se estivesse tentando entender mandarim.
O hotel em que eu estava hospedado estava próximo à Catedral de Málaga e ao maior parque da cidade, que fica próximo ao porto. Sem erro. Ali eu conseguiria me mover com facilidade naquela quarta-feira. Muitos turistas passavam por todos os lados, com aquele calor e sem nenhuma nuvem, não era de se esperar menos.
Uma caminhada após o almoço até Alcazaba, uma fortificação construída no século XI pelos mouros, quando eles dominaram toda a região e se estabeleceram por mais de 700 anos. Como toda a Europa e a Península Ibérica, a história fica marcada por edificações e milhares de museus para contar em detalhes e pontos de vista duvidosos sobre guerras e invasões, sobre a igreja católica e o islamismo.
Para os apaixonados de plantão, os caminhos por Alcazaba e o Castillo de Gibralfaro são terras ainda chocantes com os remanescentes históricos daquele lugar. Histórico ou não, a vista é única. Antes as embarcações eram a vela e muito canhão, hoje vemos o superyacht da filha do sheik do Qatar. Os tempos mudaram. Os curdos daquela época ficariam orgulhosos que seus sucessores chegaram naquele mesmo lugar, inclusive esbanjando poder e autoridade.
Depois de três horas caminhando e perambulando pela história de Málaga, caminho de forma aleatória em direção ao centro histórico da cidade. Aqueles bares entre a Calle Álamos e a Plaza de la Merced que servem os mais belos tapas, uma cerveja e algum tipo de comida, fazem os convidados, que caminham pelas ruas, parar por alguns minutos e beber uma Victoria, cerveja da região. Parar no Contijo de Pepe foi obrigatório naquele momento. Havia muita gente pelas ruas e um punhado de holandeses bêbados em plena tarde e alguns locais olhando torto para aquele grupo que logo seria expulso do lugar. Vi muitos grupos sem noção pela Espanha. Um lugar barato se comparado com outros países da Europa, um clima de dar inveja para qualquer inglês e mulheres lindas e de personalidade forte. As mulheres mais firmes que já conheci foram as espanholas, então pense bem antes de fazer graça com elas.
Quando atravessei a Plaza de la Merced para continuar minha aventura por aquelas ruas, o tempo fechou e as pessoas que caminhavam por ali sumiram na mesma velocidade em que a chuva chegou. Eu não sabia onde estava e nem em qual direção correr, meu hotel ficou só na memória agora. Sabia que necessitava de um abrigo e entrei na primeira porta que encontrei.
O tempo ficou preto. As ruas vazias. Aquela casa não tinha ninguém, na recepção estava escrito Museo Casa Natal de Picasso. Aparentemente, entrei na casa onde morou o mestre Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso. Mais conhecido como Pablo Picasso. Até hoje não entendi como os pais dele colocaram um nome tão longo. Sorte que a moda não pegou.
Como um lugar daqueles não tinha um turista? Algo não estava certo, qualquer lugar com o nome de Picasso vai ter pelo menos uma centena de pessoas curiosas para saber sobre o que se trata. Eu sabia que o Museu do Picasso seria desse jeito.
Quem diria que aquele cara, que seria um dos grandes precursores do cubismo, fora criado naqueles cômodos. Pela casa, havia descrições sobre a vida da família Picasso antes do próprio Picasso ser O Picasso. Na minha cabeça, passou de tudo sobre aquela família malagueña. Inclusive, a imagem de Don José, seu pai, pintando os pássaros que voavam entre a Plaza de la Merced, enquanto o pequeno Pablo corria na banca para pegar o jornal mais recente da cidade e saber sobre o resultado das touradas da região.
Quando jovem, o pequeno Picasso pintava aquilo que sobrevoava em sua realidade: as touradas. Inclusive, sua primeira obra foi chamada de O Toureiro. Esse tema esteve com ele por toda a vida. Touradas, naquela época, movimentavam uma sociedade inteira. Talvez seria a mesma coisa que o futebol é hoje em dia para os espanhóis.
Em uma das descrições espalhadas pela casa estava escrito:
“Don José, pai de Pablo Picasso, lutava muito com o seu pequeno salário de conservador de museu e professor na escola de artes Escuela de San Telmo. A família sabia que ali não era o melhor ambiente para criar o filho após a morte da filha mais nova, Conchita, que faleceu aos 7 anos. O pequeno Pablo passou 10 anos em Málaga antes de se mudar com todos à Barcelona, onde foi admitido na escola La Lonja. Inclusive, ele estava entre os finalistas dos trabalhos finais do ano letivo. Ele era o que mais se destacava.”
Assim se consagraria Picasso.
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Como não havia ninguém no edifício e estava um tempo impossível de se locomover para qualquer lugar que não fosse aquela casa, nada mais justo que sentar e esperar. Não há pessoas aqui mesmo, vou sentar nessas cadeiras do século XIX que estão com um lacre de “não sente”.
Passos ressoam por aquele cômodo e o som fica mais forte e seco a cada passada. Alguém vem das escadas que ligam o primeiro piso com o segundo. Aquela pessoa que atravessou a porta em direção à sala onde resolvi descansar era um ser peculiar que mais parecia com um dos moradores da época de Picasso.
Meus olhos não desgrudavam dele enquanto ele caminhava até a outra poltrona vermelha que fazia par com a minha. Aquele senhor sentou, cruzou as pernas e olhou ao redor.
— As coisas mudaram um pouco desde a última vez que passei por aqui — comentou aquele ser humano que se parecia com o mesmo que pintou Guernica.
— Prazer, Picasso — ele estendeu a mão como forma de apaziguar aquele momento estranho.
Pois agora, o famoso Picasso estava na minha frente. Talvez eu estivesse delirando, mas ele era a mesma pessoa das fotos que todos conhecem. Um pouco mais baixo do que aparenta, mas ainda com cara séria e um ar de… Picasso.
— Por anos eu nunca entendi aquele buraco perto do lustre. A história que meu pai contou é sobre os ratos que passavam pela tubulação da casa, mas essa história nunca entrou na minha cabeça. Anos mais tarde, minha mãe, dona Maria, me contou que meu pai estava polindo um revólver e acidentalmente acertou o teto. Aquele buraco foi a obra dele.
Após toda aquela história sobre ratos e tiros, Picasso disparou:
— Você faz algum tipo de arte?
— Se eu faço algum tipo de arte? — minhas mãos estavam trêmulas. Quem era eu para dizer que era pintor para Picasso. Assombração ou não, aquilo era real.
— E há outra pessoa na minha frente? Você tem cara que trabalha no comércio e pensa pouco em arte.
— Você realmente é Pablo Picasso? — meu olhar ia penetrando os olhos daquele senhor com desconfiança e medo.
— Não, sou Salvador Dalí. Claro que sou Picasso. Então, você não respondeu a minha pergunta. Se seu trabalho não envolve nenhum tipo de criatividade, não vou perder meu tempo nesse lugar.
— Não, não, não! Eu sou pintor. Antes de vir para Málaga, eu estava em um curso com Ricardo Dalí, descendente de Salvador Dalí.
Picasso me interrompeu na hora que ouviu o sobrenome Dalí e disparou que não havia nenhum descendente Dalí capaz de ensinar arte. Que aquela pessoa estava tentando se passar por alguém que ganhou a vida pela arte. Talvez aquele Ricardo fosse algum parente distante dele, mas está usando um sobrenome muito poderoso. As pessoas mais influentes das artes não brincavam de ensinar alunos a pintar; eles não tinham tempo para tal além dos seus deveres com a tinta. As pessoas que queriam se dedicar à arte buscavam mentores para auxiliar no seu aprendizado, que era contínuo e levava anos. “Assim como da Vinci aprendeu com Verrocchio em uma vida inteira, você se dedicou ao seu mentor?” Foi a pergunta que ele soltou e me pegou de jeito. Eu sabia que não se comparava com tal situação.
Antigamente, o estudo da arte parecia ser mais intenso. Hoje passamos grande parte em conferências e eventos, no YouTube e em cursos para aprimorar as técnicas de pintura que os grandes pintores aprenderam com seus mentores e com o tempo desenvolveram. E são essas técnicas que aprendemos por aí com tanta facilidade.
Melhor nem entrar no assunto tecnologia para não decepcionar aquele senhor que apareceu na minha frente na forma de Picasso.
— Meu jovem, quero te mostrar algo que escondi na casa quando completei 60 anos e vim visitá-la — Picasso levantou de maneira lenta e suave. Seus movimentos ornavam com a respiração de qualquer pessoa que passasse por ali, mas como eu era o único na casa, essa pessoa era eu.
Fomos até um quarto a 30 passos de distância com dezenas de quadros na parede e uma estante de livros restaurada cheia de exemplares espanhóis e franceses. Eram livros sobre arte e romances de escritores de todo mundo. Pude ver Don Quijote e Le Comte de Monte-Cristo, do escritor francês Alexandre Dumas, entre outras obras que nunca havia visto antes.
— Está aqui nessa estante em algum lugar. Eu deixei uma carta que escrevi entre esses livros e gostaria de entregar a você — assim ele se esforçava e procurava entre as páginas de todos os livros que tinham capa vermelha.
— Eu lembro da cor da capa do livro, mas não o nome. Foi um momento muito rápido naquele ano de 1941 e precisei sair às pressas da casa para ninguém perceber que eu deixei algo escondido. Era certo que algum curioso pegaria e venderia para outro lunático.
Depois de quase 10 minutos de procura e as esperanças quase sucumbindo, ele lembra de um detalhe que estava naquele livro de capa vermelha. Havia um pingo de tinta azul celeste borrado na primeira orelha do livro. Foi questão de um minuto e um pouco de sorte dele encontrar o livro certo. Ele já tinha passado por aquele, mas não tinha percebido aquele micro detalhe que mudava todo o rumo do momento. Não sabia sobre o que era o livro, mas isso não considerava no momento.
Ele abriu a última página daquele livro misterioso e arrancou a folha. A carta estava escrita direto no livro. Picasso, quando disse que colocou a carta ali, colocou o livro inteiro para ninguém encontrar.
— Pega, é sua. Escrevi-a para você quando completei 60 anos, alguém que eu imaginava viver no futuro e tinha o mesmo ofício que eu. Não se sinta ofendido com algumas palavras. Talvez a verdade entre na sua mente como uma faca enferrujada, fazendo estrago em todos os lados. Que sirva de motivação também para você continuar sua jornada. Mas lembre-se: Picasso só existe um. Procure o seu estilo que ele será o seu novo eu. Fuja de pessoas que utilizam o nome de alguém importante e famoso; provavelmente esse Dalí que você conhece vende muitas obras por causa do sobrenome, mas ele é um molde de alguém que criou um estilo.
Foram as últimas palavras que ouvi daquele senhor que agora seguia para a mesma escada de onde havia vindo. Eu fiquei em choque e perdi metade do raciocínio naquele momento. Eu sabia que gostaria de falar com ele, mas as palavras não apareciam. Tudo ficou mudo e silencioso. Tentei buscá-lo novamente naquela escadaria clara e misteriosa, mas ele já havia sumido. Para onde ele foi? O que havia acontecido naquele momento? Agora eu vejo que o Picasso me visitou.
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Voltei para a mesma poltrona onde havia sentado por alguns minutos com Pablo Picasso e fiquei encarando aquela carta.
“Provavelmente não nos conhecemos, mas senti que uma carta para alguém no futuro faria essa pessoa mudar o rumo da sua história. Não costumo escrever cartas sobre minha vida e sobre arte. Eu fui e sempre serei Picasso, o artista mais conhecido do mundo, junto com Dalí e da Vinci. Deixamos nossos nomes não por sorte, mas por suor diário e trabalho árduo quase que doentio. Pequei em alguns aspectos da vida familiar e amorosa. Eu precisava extrair o máximo das mulheres com quem me relacionava, e isso destruiu toda a minha relação com Françoise Gilot e meu primeiro filho, Paolo. Acredito que, por minha causa, ele virou alcoólatra devido à depressão. Eu pintei com todo amor e ódio que alguém poderia ter e farei isso até as últimas horas da minha vida. Paguei um preço caro para me tornar Picasso. Aprendi a pintar, e o mundo inteiro veio atrás de mim. Fui e sempre serei o maior dos pintores e personalidades artísticas. Eu amei a vida que tinha, mas precisei decepcionar muita gente para tal. Não podemos voltar no passado e não aceito me arrepender de tudo, mas gostaria de dizer para você, que lê piamente essa carta, que o sucesso só é bonito quando todos estão em harmonia com você. Pinte todos os dias, ame todos os dias.
Pablo Picasso”
— Moço, você poderia sair dessa poltrona! É proibido sentar aí — uma mulher apareceu do além, como Picasso havia feito, mas a realidade voltou e ela me encarava como se esperasse minha atitude de deixar o lugar.
Em instantes, aquele espaço vazio estava cheio de turistas. Ali não me pertencia mais, não era a mesma coisa estar ali com aquelas pessoas. A conversa que tive com Picasso e o presente único que recebi valeu mais do que o curso em Barcelona. A vida é muito curta para lamentarmos sobre os erros. Vou levar esses ensinamentos do grande mestre como guia: pintar todos os dias e amar todos os dias.
O tempo está lindo de novo; tenho até oito horas da noite para desbravar essa cidade. Foi um prazer conhecê-lo, Picasso.
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