Contos

Fausto com vinho

Estou na estrada há quase 10 meses e, a cada dia, me sinto mais empoderado psicologicamente em relação à vida. Depois de ter entrado em mais aviões nos últimos meses do que em toda a minha vida, percebi que era isso que eu buscava. Tudo pode acontecer quando você está sozinho em aeroportos, templos, praias ou qualquer lugar onde há muitas nacionalidades juntas.

“Senhores passageiros, o trem em direção a Berlim parte em 10 minutos.”

Nunca vi nada parecido com essas estações em Praga, todas lindas e maravilhosas, mas não consigo me entender desde que cheguei. Se eu perder esse trem, vou ter rasgado 40 euros, isso vai me quebrar. Berlim era a cidade que eu queria ter visitado há muito tempo. Não é toda hora que a oportunidade chega, ainda mais com o tempo azul que vai fazer naquela semana na capital alemã.

Vou ficar na casa de uma amiga que conheci algumas vezes quando estive no Cairo. Ela é turca, como metade de Berlim por causa da imigração nos anos 70, e se mudou para a cidade para estudar música na Hochschule für Musik Hanns Eisler Berlin. Ela toca violino perfeitamente e quer ser a mais nova integrante da orquestra filarmônica de Berlim no próximo ano. Que ser humano incrível! Nós nos damos muito bem e até cogitei me mudar para Berlim um dia, mas ainda tenho muita coisa para ver e experienciar.

Depois de ficar quase 6 horas dentro de um trem, chego às 15h na estação de Berlim. A Alemanha é um país que não tem problemas com o inglês, todo mundo fala muito bem, pelo menos foi isso que percebi com os alemães que conheci pelo mundo. O que me mata em Praga é a falta de entendimento do inglês com os turistas, e lá recebe turistas aos montes o ano inteiro. Nunca vi tantos grupos de italianos na terceira idade e chineses ricos comprando nas grifes mais caras da cidade. O que me salvava era a cerveja a preço baixo e a quantidade de mulheres lindas por metro quadrado.

O que eu mais gosto de conhecer nas cidades é o transporte público. Na Europa, ele funciona muito bem e todos são extremamente bem conectados. Com um bilhete, você anda na cidade inteira, e ainda eles vendem passes semanais que permitem à pessoa se locomover por tudo a um preço justo. Acabei de pagar 15 euros na passagem para essa semana, vou andar muito por aqui.

Pego o metrô na estação de trem até o bairro da Tuvana. Ela mora na região de Kreuzberg, um bairro hipster da cidade de Berlim. Eu não sei o que é ou não hipster nessa cidade; tudo que eu li e ouvi é que esse lugar é um aglomerado de pessoas malucas e estilosas. Essa cidade é tudo o que a Alemanha não é: descolada, desconstruída e diferente. Todos que querem fugir do padrão acabam em Berlim. É o tipo de cidade em que eu moraria, onde os cafés estão cheios de pessoas interessantes e as praças com música eletrônica no verão. É o mix perfeito de liberdade e organização.


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Desço na estação de metrô após pegar duas linhas diferentes. Me deparo com um casal gay na saída do vagão e fico pensando que avanço para uma cidade que foi palco da Segunda Guerra Mundial, onde ser diferente era sinônimo de perseguição. Gays com descendência árabe trocando carinho em plena tarde de Berlim. Acho lindo essa troca e atitude, é praticamente um símbolo de mudança para o mundo. Parece que eles estão gritando: “O mundo não precisa de mais puritanos para estragar a beleza do diferente, vão se foder!”

Bem na saída da linha de metrô, onde tenho uma vista privilegiada do Böcklerpark, vejo um rio e dezenas de pessoas nos gramados que fazem fronteira com ele. Já me deparei com um show de rock alternativo no meio do parque e uma galera em volta. Fico arrepiado só de lembrar da cena do guitarrista tocando a introdução de Purple Haze do Jimi Hendrix. Sabe aquela frase “estar no lugar certo e na hora certa”? Essa pessoa era eu. Berlim está sendo uma anfitriã incrível.

Eu sinto um dedo mexendo na minha orelha esquerda e fico meio assustado. Quando olho para trás, quem foi me buscar na estação? Ela mesma, a Tuvana, a turca mais linda que conheci na vida. Acredito que é a pessoa mais linda que já vi. Faz 1 ano que não nos vemos e, até hoje, ela consegue fazer minha alma tremer. É uma sensação que tive em raros momentos nesses 30 anos de vida.

— A única pessoa que faz isso na sua orelha sou eu, assim espero, por causa da surpresa? — Ela ria de maneira meiga enquanto falava.

— Ahhh, tem umas sete meninas que conheço que costumam fazer esse tipo de coisa — fui bem irônico e ela percebeu, me dando um abraço na hora.

— Você deve estar cansado dessa viagem, esse trem é muito devagar entre Praga e Berlim. Na próxima vez, eu te busco no aeroporto; as passagens de avião são mais baratas do que de trem. Trem na Europa é sem noção.

— Eu sei que é mais barato, mas nunca viajo de trem e essa era minha oportunidade de fazer algo diferente. Você sabe que no Brasil trem não existe, quis mudar um pouco. Então, você quer que eu venha mais vezes para Berlim? — ela ficou vermelha quando fiz esse comentário.

— Você sabe o que eu penso de nós. Esse negócio de você querer ficar viajando para cima e para baixo uma hora vai te desgastar. Não significa que você ganha dinheiro com a internet que precisa ficar pulando de galho em galho. Berlim é uma cidade incrível, tem tudo que você gosta e tem eu.

— Você sabe que está certa, eu já estou enjoado de ficar me movendo. Já conheci 93 países e continuo querendo mais. Fico feliz que você se vê morando comigo em Berlim. Você sabe que desde que nos separamos no Egito eu não me envolvi com mais ninguém.

— Se eu não te conhecesse, pensaria que fosse verdade. Em um ano, eu duvido que você não tenha se envolvido com ninguém.

— Eu disse que não me envolvi, mas eu saí casualmente com algumas meninas desse globo. Esqueceu de como adoro transar? Emocionalmente não me envolvi com ninguém, só fisicamente.

— Tu é um babaca mesmo, não quero mais saber das suas aventuras amorosas.

— Você que começou — ri da situação.

Depois de termos caminhado por 10 minutos, chegamos no flat em que Tuvana estava morando. Que lugar aconchegante! O apartamento é pequeno, mas está decorado com a cara dela. Com coisas que ela garimpa no mundo inteiro. Acho que isso temos em comum: adoramos viajar. Ela já viajou e fez cada coisa nesse mundo que meu queixo ficava no chão. Inclusive, ela fez a travessia entre Ushuaia, na Argentina, e a Antártida. Essa aventura acontece atravessando o estreito de Drake, um dos mares mais violentos que existem.

Comemos algo enquanto bebíamos cerveja e conversávamos um pouco sobre a vida e suas aulas de violino para ingressar na orquestra de Berlim. A pressão é muito grande sobre ela. A família inteira vem da classe artística de Istambul e todos esperam ver a caçula na orquestra no próximo ano. Por mais que eu saiba que ela vai conseguir, e sempre deixo isso bem claro para ela, ainda assim a insegurança chega à cabeça da Tuvana. O pai é um dos pintores mais famosos da cidade e a irmã mais velha se tornou best-seller de venda de livros na Turquia com menos de 30 anos – algo fora dos padrões do mundo literário. Todas essas conquistas a colocam em um patamar tão elevado quanto sua família.

Eu dormi por uma hora no final daquela tarde e despertei meio perdido com relação ao local. Levantei e não encontrei ninguém na casa. Fui à cozinha e encontrei um bilhete na geladeira: “fui comprar vinho e jantar, não quis te acordar”. Tomei banho porque sabia que iríamos fazer algo aquela noite. Era quarta-feira, mas nunca se sabe o que esperar de Berlim.

— CHHHHEEEEGUEEEEEI!!!

Tomei um susto e quase cortei minha garganta com a navalha, por pouco não fiquei sem pescoço.

— Você quase comete um acidente. — gritei do banheiro.

— Ops! Essa não era minha intenção… você está bem?

— Sim, sim, só estou terminando de ajeitar a barba e já te encontro.

— Vem logo! Tenho uma surpresa para você. Você vai amar!

— Uhhhh, fiquei curioso agora. O que é?

— Só vem!

Terminei tudo o que tinha que fazer no banheiro e me arrumei. Cheguei na cozinha e encontrei Tuvana em um vestido cor salmão que combinava com sua pele morena bronzeada. Eu não entendi nada. Será que vamos sair hoje? Eu já tinha visto ela com aquela roupa em fotos e cheguei a comentar o quão linda ela ficava naquele vestido. Ela me mandou esperar na sala e não hesitei em obedecer. O que será essa surpresa, pensei comigo. Não havia nada de diferente na sala, o quarto estava da mesma maneira que deixei, deve ser alguma coisa para comer.


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Ela chegou com um pacote embrulhado. O presente estava enrolado em um pano de camurça em tom vermelho escuro, algo mais parecido com marrom do que velvet. Eu não queria abrir para não estragar a embalagem, mas com aqueles olhos me penetrando no momento, não tive outra opção. Eu abri com o intuito de não estragar o pano, mas quando vi o conteúdo fiquei intrigado. Era um livro do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, o famoso Fausto. Era uma edição especial em capa dura em alemão. Eu não entendo uma palavra em alemão, apenas “entschuldigung”, que significa desculpa.

Mas como ela sabia que eu colecionava livros famosos escritos em seus idiomas de origem? Eu não lembro de ter comentado isso com ela no Cairo ou em nossas conversas semanais via mensagem.

— Como você sabia? — perguntei, indignado.

— Sobre o seu interesse em livros escritos no idioma de origem?

— É…

— Eu tive um sonho dois meses atrás de que você viria me visitar em algum momento e, nesse sonho, vi uma estante com livros famosos do mundo inteiro. O mais interessante era que todos estavam no idioma de origem. Os livros de Alexandre Dumas em francês, os livros de Haruki Murakami em japonês, o Dom Quixote em espanhol e diversos títulos em hebraico, português e inglês, cada qual com o seu escritor de origem. Não tinha nenhum título em alemão. Quando acordei, me senti estranha e anotei o sonho no meu caderno para não esquecer. Um mês após o sonho, você me enviou uma mensagem dizendo que viria para Berlim em uma conferência e eu lembrei novamente do sonho. Comprei esse exemplar do Fausto em alemão para você colocar na sua coleção. Agora você tem um escritor alemão. Vamos tomar vinho? Comprei kebab e baklava pra gente comer depois — ela sorriu.

Eu ainda estava pensativo enquanto bebíamos vinho e conversávamos sobre os lugares em que estive nesse meio tempo em que ficamos longe um do outro. Na minha cabeça, tudo aquilo era muito estranho; eu nunca tinha percebido o quanto a nossa conexão era forte. Esse é o tipo de coisa que não deve ser ignorado. Minha cabeça estava borbulhando de informações. Ela se levantou e foi buscar na gaveta do móvel perto da televisão um caderno.

— Olha como eu não estou de brincadeira…

Estava escrito todo o sonho com a data de exatamente 2 meses atrás. Olhei para ela e perguntei:

— Quer namorar comigo?


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só quem viaja sabe como ser surpreendido
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