Contos

Os três desconhecidos

Planejar uma viagem não consiste apenas em comprar passagens, reservar hospedagem e elencar o que se deve e o que se deveria fazer: os museus importantes a serem conhecidos, os que podem ficar em segundo plano, caso sobre tempo. A lista do que fazer é longa. Podemos colocar o que acabei de mencionar nos itens essenciais, porém a viagem se torna especial quando adicionamos os itens inusitados — como se deparar com um set de filmagem onde a circulação de estrelas de cinema faz parte do cenário, vivenciar a primeira etapa do Giro d’Italia sem ter planejado ou cair de paraquedas numa sessão de autógrafos de algum escritor famoso do país, algo que geralmente acontece em livrarias, um lugar sagrado para quem vive das palavras.

Há quem gostaria de ser adotado por um casal de nonni, ou avós, na Itália. Quase uma cena de filme. Como ser famoso não é uma opção, pelo menos podemos criar a nossa própria história.

Sigo lendo uma edição italiana da National Geographic enquanto o nosso trem corta as planícies do Piemonte, região norte da Itália, ao lado da minha namorada. Um trem relativamente confortável, sem muitas pessoas a bordo, provavelmente por causa do horário em que embarcamos, 5:30 da manhã. É uma viagem de férias, com seu tempero de inspiração. Enquanto busco novas ideias para um futuro livro, minha companheira de viagem segue em busca de cliques para sua próxima mostra. A viagem é curta. A fome é grande. Conforme avançamos a boa velocidade por pequenas cidades da região, pensamos em como alguns cornetos e um cappuccino serão belos anfitriões quando chegarmos ao nosso destino.

Na estação Verbania-Pallanza, estávamos sós, enquanto víamos os últimos passageiros seguindo viagem para seus destinos finais. Eram italianos que sabiam para onde iam, não dois estrangeiros que simplesmente vieram, sem muitos planos concretos. Distância até o centro da cidade: 7 km. Como assim? Descemos na cidade, mas a estação fica em outro lugar. Curioso. Isso vai atrasar ainda mais nosso café da manhã de boas-vindas. Não parece haver muitos ônibus por essas bandas, mas há um senhor que apareceu ao nosso lado; talvez ele também esteja perdido.

“Buongiorno, signore. O senhor também vai para Verbania?”

“Sim, mas estou esperando uma carona.”

“Não encontramos nenhum ônibus, e a cidade fica a 7 km daqui. Achamos que descemos no lugar errado.”

“É aqui mesmo. Essa estação é bem estranha, ela não deixa ninguém na cidade e não tem uma estrutura para quem chega e quer ir para Verbania. Os ônibus são bem ruins para lá, não dá pra confiar muito.”

“Pois é, vamos ter que dar um jeito nisso. Obrigado. A propósito, me chamo P. e essa é a I., minha namorada.”

“Prazer em conhecê-los, sou o Giuseppe. Talvez eu consiga dar uma carona para vocês. Quando minha carona chegar, vou perguntar ao meu amigo. Como estamos indo para o mesmo lugar, não vejo problema.”

“Adoraríamos, isso nos ajudaria muito.”

Giuseppe morava em Verbania com a esposa, como nos contou, mas naquele dia um amigo o buscaria na estação de trem. Ele nunca sequer pegou os ônibus, mas, talvez por experiência própria, já havia vivido isso em outras pequenas cidades da Itália. E, para dificultar, era sábado, então o transporte podia ser limitado nos finais de semana.

Conseguimos nossa carona. O amigo de Giuseppe parecia um pouco carrancudo à primeira vista, mas considerando que ele havia acordado vinte minutos antes, em um sábado ensolarado, acredito que estava no seu direito. Vai saber o que esse homem passa durante a semana. Mas ele se revelou uma pessoa interessante assim que começou a falar.

Era sociólogo, aparentemente aposentado, especializado nos povos originários da América do Sul. Ele sabia muito. Muito mais do que nós, que viemos daquela região. Seu conhecimento dos nomes próprios e da influência de algumas tribos até em vocabulários franceses foi surpreendente. Para nós, era novidade. Assim como era muito cedo para ele acordar, era muito cedo para eu processar aquele volume de informações.

Ele nos deixou no centro da cidade após nossa aula de história e sociologia. Nos despedimos e seguimos para onde, só Deus sabia, deveríamos ir.

“E se costeássemos o lago sem rumo até aquela ponta? Parece um lugar legal para tirar fotos”, comentei com a I.

“Parece interessante, cheio de vilas. Talvez encontremos pontos legais”, ela respondeu.

Antes dessa conversa, havíamos pedido dois cornetos e um cappuccino cada um para continuar. Geralmente, o café da manhã nesses pequenos lugares da Itália, ou até mesmo em grandes centros, se resume a algo doce e cappuccino. O cappuccino sempre era bom. O corneto era bom, mas variava entre bom e perfeito, especialmente quando encontrávamos a versão com pistache.

A caminhada era bela, longa, com o sol nos aquecendo levemente, e muitas pessoas transitando pela via. Alguns a pé, outros de bicicleta. Era um sobe e desce entre casas habitadas e outras abandonadas. Não eram apenas casas, mas vilas, que seriam nossas “mansões”, com estruturas altas, muitas janelas, frequentemente com um portão elegante e vegetação podada milimetricamente, no caso das vilas habitadas. As casas abandonadas tinham tudo isso, mas com um toque de cenário de terror e vegetação descuidada.

Se parecíamos perdidos, não sei, mas tivemos o prazer de conversar com uma senhora que fazia sua caminhada diária. Sua figura era cômica, carregando um walkman da Sony idêntico ao que eu tinha no início dos anos 2000. O fone era o mesmo, com aquele formato estranho que não encaixava direito na orelha. Ela nos contou que prezava pela simplicidade, que já havia tentado os produtos da família “I” (ai), mas não encontrou prazer. Os discos que ouvia em casa não eram os mesmos que ouvia nas caminhadas. Em casa, eram CDs originais; nas caminhadas, ela ouvia fitas gravadas nos anos 2000.

“Já comprei três desses aparelhos. Um perdi na chuva, outro sumiu, agora estou com este. Todos da mesma marca.”

“Onde a senhora os compra? Não consigo imaginar um lugar que ainda venda isso, só lojas especializadas na internet.”

“Já ouviu falar no eBay? Se este quebrar, lá tem um estoque infinito dessas coisas.”

Ela era um personagem, mas não daqueles caricatos de programas matinais de TV. Ela era como a última pessoa a sair de uma balada dos anos 80, não apenas por causa do walkman, que seria sua revolução pessoal, mas pela mistura de décadas em cada peça que usava. Imagine aqueles programas de ginástica americanos, mas com um toque extra de rosa e excentricidade. Ela vestia um New Balance da época em que NB não era tendência. Usava uma jaqueta bomber fina, quando jaquetas bomber ainda não eram para todos. Seu conjunto parcialmente rosa não era só um choque de cor, mas um choque visual para os olhares tradicionais das pessoas que passavam.

Fomos convidados a caminhar com ela até onde quiséssemos, ou até onde aguentássemos. Entramos na sua onda, sem a mesma pinta que ela, mas com nossos tons de cor mais sóbrios. Ela nos aceitou e seguimos felizes. A conversa girou em torno da sua vida após se mudar para aquela cidade, depois que ela e o marido se aposentaram, e dos filhos, que ainda moram em Milão, onde criaram suas próprias vidas e carreiras.

Apenas uma neta estava por perto. Pelo sobe e desce dos fatos, eles criaram uma pequena fortuna com uma empresa têxtil nos anos 70, e as coisas fluíram bem. A vida passou depressa em Milão, uma vida boa, mas com alguns excessos. A cidade brilhava para quem buscava esse brilho. Alguns excessos acompanhavam aqueles que estavam realmente dispostos a entrar no ritmo da cidade que explodiu no mundo. O primeiro choque para aquela família foi a chegada do primeiro filho. Tudo mudou. As luzes ainda existiam, mas se transportaram para outro ponto: uma casa perto do Lago Maggiore.

“Hoje eu moro nessa casa, mas passei muito tempo apenas indo a passeio. Minhas raízes em Milão não me soltavam. Quando a responsabilidade de criar filhos foi diminuindo, com cada um construindo sua vida, decidimos, há uns oito anos, mudar definitivamente para Verbania.”

“Algum arrependimento?”

“Não, aconteceu na hora certa. E desde então comecei a fazer caminhadas diárias. Assim como vocês me veem hoje, talvez esse tenha sido o primeiro look que usei.”

“Mesmo walkman?”

“Mesmo walkman, e os mesmos CDs.”

Fizemos parcialmente o percurso com ela. Foram cinco longos e interessantes quilômetros. Nos despedimos, ela se foi, mas antes deixou seu número de telefone, caso precisássemos de algo. Esse passeio tem sido uma inspiração para ambos: eu coletava momentos incríveis para um futuro livro cuja história se passa na Itália, e a I. tirava fotos de todos os cantos do lugar. Ela fez uma sessão de fotos com nossa amiga senhora. Havia contrastes impecáveis em cada foto: ao fundo, a Itália, com sua estrutura e arquitetura antigas, e ela, no estilo moderno que nem uma capa de revista conseguiria reproduzir.

Fazia calor. Já passava do meio-dia e ainda não conhecíamos a cidade direito, só havíamos passado por ela para tomar o café da manhã. Vimos alguns comércios fechados antes, que agora deviam estar abertos. Pós meio-dia é hora de tomar um Aperol Spritz e comer algo. Tiramos nossa hora para almoçar naquela pequena cidade, onde as ruas eram curtas e pareciam trombar umas com as outras, como se estivessem com pressa. Essa é a sensação quando as ruas são muito apertadas. Não passava carro, apenas pedestres e bicicletas. Quando uma carriola passava por nós, parecia um caminhão em fúria.

Foram dois Aperol Spritz, duas pizzas e um expresso. A cidade ficou cheia, era possível ver carros com placas da Alemanha, Áustria e Suíça. Honestamente, eles dominavam o lugar. As placas dos estabelecimentos estavam em italiano, alemão e francês. O suíço estava servido com todos os idiomas que ele poderia falar. Por sorte, ainda tínhamos o italiano para nos acompanhar; sem ele, seríamos apenas passantes, pontos fora da curva fora de rota. Perdemos boa parte da experiência quando não há vestígios de idiomas que conhecemos por perto.

Uma gota de palavras que reconhecemos é um convite para explorar mais. Idiomas que não entendemos são como papel de parede: é bonito, mas não entrega o significado completo daquele lugar. Se eu tivesse um superpoder, gostaria de compreender os mais de seis mil idiomas espalhados pelo mundo. Mas me contento com quatro.


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Andamos pelo centrinho, havia mais gente, mais turistas, algumas pombas e cafés abertos. Havia uma charmosa livraria, com um grande sofá de couro no fundo, uns postais pendurados, um espaço amplo com dezenas de objetos antigos. E prateleiras de livros, mais livros, e no fundo dela um corredor que levava a uma pequena sala com ainda mais livros. Fomos abordados por uma moça da nossa idade, baixa, cabelo curto e óculos grandes e azuis. Os óculos grandes eram sua marca, talvez o símbolo de sua visibilidade; eles chamavam atenção, e ela emprestava o rosto para que os óculos se destacassem.

“Bem-vindos! Se precisarem de ajuda, é só chamar.”

“Obrigado. Você tem algum exemplar do Rodari?”, perguntei.

“Tenho alguns aqui no fundo, na sessão infantojuvenil. Deixe-me pegar para você.” Dois minutos depois, ela retornou com cinco livros do Rodari. “Está buscando algum em específico?”

“Esse maior na sua mão.”

“Favole al Telefono?”

“Sim, ele me ajudou bastante a aprender italiano.”

“Não é um livro fácil.”

“Por isso eu demorava quase uma hora em cada conto, mas li metade do livro. Não o tenho na versão física, acho legal tê-lo como recordação.”

A I. caminhava pela livraria como se estivesse em um bosque. Tirou algumas fotos, e a livreira nos deu permissão para isso enquanto conversava comigo.

“De onde vocês são?”

“Brasil, mas estamos aqui de passeio. Vim para a Itália buscar inspiração para meu livro, e minha namorada é fotógrafa. Ela tem uma mostra no Brasil em seis meses e está construindo uma história por onde passamos.”

“Essa é a profissão de vocês?”

“Trabalhamos no setor de tecnologia, o que nos permite viajar, comprar alguns livros, talvez escrever um, e tirar fotos.”

“Interessante. Já viram bastante por aqui? O que falta para essa jornada?”

“Vimos o que precisávamos. Saímos de Milão e estamos visitando os lagos. Este é o primeiro. O que falta? Acho que falta continuar a andar e viver. Coisas acontecem para quem se move. Hoje, por exemplo, tivemos boas conversas com dois senhores: um nos salvou de manhã, e a outra nos trouxe alegria em sua caminhada diária. Era uma senhora exótica, com um walkman.”

“Até quando ficam por aqui?”

“Até amanhã à tarde, depois seguimos para o Lago di Como.”

“Gostaria de lhes apresentar duas pessoas, acho que será interessante para seu livro. Não só eles, mas a casa onde moram, a arquitetura. Talvez seja um lugar em que sua namorada se ache nas fotos. Ali mora um apanhado de histórias.”

Chamei a I., e nossa nova amiga, que logo se apresentou como Diana, também a convidou pessoalmente para jantarmos naquela noite na casa de seus avós.

“Estou morando com eles até minha casa terminar a reforma. Se vocês andaram ao redor do lago na Via Vittorio Veneto, em direção ao jardim botânico, provavelmente passaram em frente à casa deles.”

Ela nos passou o endereço, agradecemos o convite e fomos para o nosso hotel. Ficamos lá até a hora do jantar, mas depois ficamos um pouco sem entender o porquê de ela nos ter chamado sem ao menos consultá-los. Apenas fomos.

Chegamos pontualmente ao nosso destino. Era a casa pela qual passamos mais cedo naquele dia, onde tiramos fotos. Uma casa rústica, grande e iluminada. Esse detalhe só ficou evidente à noite, já que, de manhã, ela estava entregue à luz do sol. À noite, parecia que os arquitetos da escuridão a haviam reestruturado para que fosse a mesma casa, mas outra ao mesmo tempo. Fomos recebidos por Diana no portão principal. Levamos um vinho para não chegar de mãos vazias e uma câmera fotográfica.

A primeira surpresa: logo na entrada, reconhecemos a senhora excêntrica com quem caminhamos mais cedo. Uma coincidência enorme. Nos apresentamos propriamente. Nos sentamos, e logo em seguida o avô desceu as escadas — era o Giuseppe que esperava na estação de Verbania. Outra surpresa! Não apenas o tínhamos em nossa lista de contatos telefônicos, mas agora estávamos em sua casa. A mesa estava posta com talheres, pratos, taças e copos.

Eles ficaram tão surpresos quanto nós. De alguma forma, aquele encontro nos reuniu em sua bela vila nos arredores de Verbania. Parte da história foi contada pela avó; a outra, pelo avô.

Eu tomei notas mentais para incluir aquele momento em algumas partes do livro que planejava escrever. A I. tirava fotos sem pudor — não só foi autorizada pela matriarca e o patriarca, mas eles nos levaram por toda a casa, explicando cada detalhe. Era um verdadeiro museu, do mais alto bom gosto, diante do Lago Maggiore. Tivemos dois guias que nos contavam histórias dos quadros, dos vasos, das adagas, das fotos, dos memorandos militares da Segunda Guerra Mundial. O avô era um aficionado por história bélica. Em seu arsenal de artefatos militares, havia espadas usadas pelos mamelucos e otomanos, rifles e pistolas da Primeira e Segunda Guerras, além de mapas, comprados em leilões, que mostravam como as batalhas foram planejadas. Não havia placas explicativas, pois eles eram os narradores de cada pedaço de história ali presente.

No meio das explicações, a neta nos disse que nunca se cansava de ouvir essas histórias.

“E foi daqui que saíram todos os recursos para nossas excentricidades”, disse o avô, apontando para uma foto que mostrava a inauguração da fábrica têxtil que fundou.

Os diálogos foram se dissolvendo. O que aconteceu entre o convite e o jantar, seguido de um passeio à noite pela costa do lago, adicionou uma camada de história às nossas próprias histórias. No final da noite, bebemos chá na biblioteca, onde o avô disse passar boa parte de seu tempo. Era ali que mantinha a mente ativa, escrevendo e lendo textos antigos que remontavam a diferentes momentos de sua vida. As prateleiras exibiam uma coleção de livros que faria qualquer leitor sonhar em viver naquele espaço.

Ele também ajudava na curadoria da livraria que visitamos no centro da cidade. A Diana era quem gerenciava o lugar, preservando cada canto para os visitantes. Essa era a vida que lhe dava prazer: manter uma livraria funcionando no meio das Amazons e dos livros digitais. Entre uma conversa e outra, descobrimos que aquela livraria era palco de muitos lançamentos literários, além de abrigar palestras, encontros de autores, editoras e até cineastas que já passaram por lá. Esses eventos aconteciam de forma orgânica. Parecia que os deuses dos cornetos nos haviam dado material para escrever alguns capítulos e montar uma mostra de respeito, com imagens de uma Itália pouco conhecida aos olhos do público.

Afinal, a Itália que conhecemos ali, naquela pequena cidade, não quis nos apresentar somente cappuccinos e cornettos. Era uma Itália que nos quis apresentar um lago, um walkman e uma livraria.

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2 Replies to “Os três desconhecidos”

Eliana Rejane Lemos

Toda história tem personagens que nos mostram a quantidade de pessoas boas que encontramos por esse mundo afora. Vocês atraem pessoas assim!!!!

Pedro Dalmolin

Hello! É um trabalho que leva tempo, e nem sempre encontramos essas pessoas nas formas mais óbvias.