
O primeiro disco, a primeira guitarra e o cara que sabia o futuro do rock.
Por muitos meses, Jaimos (Jay-mos) esperava bater o relógio de sexta para sábado para entrar no carro de seus pais e apenas descer quando chegassem na livraria. No final dos anos 90, esses redutos de livros, revistas, CDs e pessoas falando alto ainda recebiam gente em busca de novidades. Era, de certo modo, um dos lugares mais importantes para o pequeno que ainda vivia sob as responsabilidades dos pais, mas que, quando entrava na livraria, saía correndo para o fundo dela, o lugar onde se encontravam todas as maravilhas musicais, os lançamentos, os box de colecionadores e os maravilhosos fones de ouvido para escutar tudo o que pudesse.
Durante uma ou duas horas era ali que ele se encontrava. Havia um fluxo respeitável de pessoas, adultos de todas as espécies, mas pouca criança – pois as crianças estavam na sessão de livros infantis. Os coordenadores daquela seção de música já o conheciam, não era comum ver pequenos gafanhotos por ali, e o funcionário de uniforme azul sempre sabia o que indicar para Jaimos a cada semana. Ele não apenas trabalhava ali, mas era uma enciclopédia humana, a própria figura dele parecia que tinha saído de uma banda dos anos 90, cabelos compridos, uma pulseira de espinhos e o conhecimento das letras e tendências; ele previa quais álbuns seriam lançados no futuro e até como seriam as suas capas.
“Hoje você veio para ouvir um disco do Iron Maiden lançado bem antes de você ter nascido, Somewhere in Time. Eu sei que você não faria isso, mas me promete não pular nenhuma música? Você vai se arrepiar com esse som! Depois me fale o que achou”.
“Está bem, me parece legal. Gostei da capa!”
“Eu sabia que isso te chamaria atenção”.
A música bateu forte no mesmo instante em que ele colocou o fone de ouvido, o som da guitarra de Dave Murray o aprisionou dentro daquele álbum por mais de uma hora, não porque o álbum durasse uma hora, mas porque ele o repetiu e ainda repetiu duas músicas que o hipnotizaram. Na primeira música, ele viu algo estranho na livraria, um cara que se parecia com o mascote do Iron Maiden escutando alguma coisa no display da frente. Um rosto meio cadavérico, que para a maioria das crianças causaria medo e desconforto, mas não causou para o Jaimos.
Como qualquer criança curiosa, ele analisou cada ponto do rosto daquele homem. Nem parecia de verdade. Como em todos os discos do Iron Maiden, havia o mesmo rosto estampado de diversas formas, umas mais legais que as outras. Aquele homem não o encarava, estava parado ali na frente apenas escutando música como ele. Não tinha terminado a segunda música e, sem deixar rastros, aquele homem havia sumido, mas deixara cair um adesivo no chão escrito “Your friends from Iron Maiden”. Nessa época, Jaimos ainda não aprendera a ler uma palavra em inglês, não entendia uma palavra do que diziam as suas músicas favoritas, o nome das letras não fazia sentido, e isso pouco importava quando ele estava escutando os discos recomendados pelo seu amigo cabeludo.
A única coisa que importava era o som, o barulho de todo metal batendo em algum lugar da música que ele não sabia distinguir, mas ele ficou muito bom em distinguir os sons dos instrumentos. Desde quando começou a se interessar por música, que se resumia em rock e heavy metal, ele dissecava em sua pequena cabeça cada instrumento. Ele sabia o que e quem tocava o baixo, não apenas distinguia guitarra dos outros instrumentos, mas sabia quantas guitarras faziam parte da música, se era a guitarra rítmica ou principal, esta gerava um solo estrondoso em cada música. Ele nunca tocou bateria, mas sabia onde estava cada parte que compunha o todo.
Ele avistou o funcionário cabeludo alguns metros dali, que lhe fez joinha, um joinha que destacava se estava gostando ou não da música. Quando ele emergiu naquela caverna sonora e sentou no chão por mais conforto, havia uma guitarra ao seu lado. Um modelo exato da Jackson que Adrian Smith frequentemente usava nos shows. Bela e branca, sem nenhum arranhão. Jaimos tirou os fones de ouvido pela primeira vez em meses no meio de um CD.
“Moço, posso tocar essa guitarra?”, perguntou ele ao funcionário cabeludo.
“Claro, você sabe tocar com esse tamanho?”
“Não, mas se eu tentar, acho que consigo reproduzir o som da guitarra do Adrian Smith”.
“Mande bala, apenas mantenha a guitarra viva”.
O que ele quis dizer com “mantenha a guitarra viva”, pensou o garoto. Ele colocou novamente o fone, voltou à música anterior, encaixou a guitarra no colo e ligou o amplificador. Na segunda vez que ele escutava o mesmo álbum, exatamente na música “Wasted Years“, ele tocou a guitarra, ele estava no palco com os seus camaradas de banda e todos pulavam, exceto o baterista, durante a música. Soltaram o Eddie no palco, o mascote do Iron Maiden, e ele andava e perseguia a banda, o som era alto, mais alto que o do fone de ouvido, e as pessoas cantavam, gritavam, todo mundo estava em êxtase, o solo chegou e Jaimos o tocou perfeitamente, cada nota batia em seus dedos esquerdos sem uma ponta de erro, ele sabia tocar guitarra, de alguma forma ele aprendeu com aquelas pessoas que ele religiosamente escutava todos os sábados.
As luzes se voltaram para ele, o palco tremia como um terremoto, mas eram apenas as pessoas pulando sem parar que faziam a terra tremer, eles pulavam para ele, para o solo, para toda uma geração de rock and roll. A música acabou e ele voltou à livraria, ainda sentado e com a guitarra no colo, escutava novamente cada música como se fosse a primeira vez. A segunda vez teoricamente é a primeira vez melhorada. A segunda vez vai ser segunda vez depois de escutar umas vinte vezes o mesmo álbum, quando as músicas soarem naturais aos seus ouvidos, quando cada nota na guitarra escoar pelos seus dedos, aí sim a segunda vez vai tomar forma.
“O que está achando desse álbum?”, perguntou o funcionário cabeludo.
“Muito massa! Acabei de sair de um show, eu tocava ‘Wasted Years’ na guitarra e ainda fiz o solo”.
“Tu és o cara”.
“Posso escutar mais um pouco?”, Jaimos perguntou tímido.
“Claro! Quero saber o que achou de tudo depois”.
O funcionário cabeludo virou-se e se foi. Novamente, o pequeno heavy metal meteu os fones e continuou a escutar as músicas. Agora ele escutaria pela terceira vez, mas apenas as músicas que gostou. Seus pais provavelmente o chamariam em alguns minutos. Essas músicas eram “Wasted Years” e “The Loneliness of the Long Distance Runner”. Foram os doze minutos mais lentos de sua vida. Ele prestava atenção em cada detalhe não percebido nas duas primeiras vezes que as escutou.
Ele olhou a capa com atenção de um sniper, olhou entre cada janela, dentro da loja da capa, ele examinou a musculatura da personificação de um Eddie do futuro, que segurava uma pistola futurística, parecia que lutava ou fugia de alguém. Havia escritos em mandarim, e ele, o Eddie, usava um óculos que parecia um detector de pessoas, talvez de coisas. A sua segunda música favorita começou e ele folheou o informativo do álbum para ver as imagens, ler as letras que não entendia e absorver um pouco mais da essência daquele que seria um dos melhores discos que já havia escutado em seus oito anos de vida.
Quando aquela música acabou, antes de tirar o fone de ouvido, o funcionário cabeludo veio perguntar o que achou da experiência. Não que ele quisesse vender o disco para o menino, isso não dependia dele, aquela mini carteira que ele carregava tinha apenas umas notas do banco imobiliário e o seu adesivo que o homem que parecia o Eddie deixou cair. Aquele funcionário sempre aparecia quando ele terminava o disco.
“E aí, gostou?”
“Um dos melhores que eu já escutei”, disse em êxtase Jaimos.
“Se você gostou desse, você vai amar o disco que eles vão lançar em maio de 2000, o ‘Brave New World’.”
“Como você sabe disso? Estamos no final de 1998.”
“Eu acho que sonho com essas coisas, você não sonha também?”
“Às vezes sonho, hoje eu estava tocando a segunda música do disco em um show com a banda”.
“Isso é legal! Viu, sonhos moldam muita coisa. Talvez você estará em sua banda um dia”.
“Sim, até sei tocar guitarra”.
“Eu sei disso”, disse o funcionário cabeludo alegre ao saber que ele gostou do álbum do Iron Maiden, “agora vou precisar ir, estão me chamando. Nos vemos no próximo sábado?”
“Claro!”
“Vou te apresentar um disco animal do Kiss”, o funcionário se virou e foi embora.
O pai de Jaimos foi chamá-lo.
“E aí, escutou o que hoje?”
“Um moço me recomendou esse álbum do Iron Maiden, é muito legal”.
“Capa macabra essa”, o pai analisou o disco nas mãos, a frente e o verso, “quer levá-lo? Seu aniversário está chegando e quero te dar esse disco de presente.”
“Claro que eu quero! Você vai amá-lo também”.
No caixa, a moça pergunta quem foi o atendente, e Jaimos apontou para a seção de música e disse que o funcionário de cabelo comprido o havia mostrado esse disco. A moça ficou confusa, não havia ninguém com essas características na loja, ela não se importou e colocou o nome do atendente como indefinido.
“Eu até toquei guitarra enquanto escutava o disco”, disse Jaimos ao seu pai enquanto se dirigiam à saída da livraria.
“Mas não há guitarras na loja, de onde você tirou isso?”, perguntou confuso.
“Tinha sim, havia uma Jackson branca igual à do Adrian Smith e eu a toquei”, e moveu seus pequenos dedos enquanto solava sua air guitar.
“Você é um verdadeiro rock star!”.
Em maio do ano 2000, como o funcionário cabeludo disse, que anos mais tarde Jaimos iria reconhecê-lo com o rosto do Robert Plant, o álbum “Brave New World” do Iron Maiden foi lançado com sucesso. Seu amigo nunca errava. Desde que manteve o adesivo deixado pelo Eddie em sua carteira, era como se tivesse um ticket que o levasse semanalmente para dentro de cada show de todas as bandas de rock.
Hey,
o que você achou deste conteúdo? Conte nos comentários.