A saudade chega em formatos e momentos diferentes de nossas vidas. Lembrar da saudade é um negócio estranho, conheci gente que olhou para um urso de pelúcia e soltou “que saudades daquela época”. Saudades é um sentimento pessoal. Um sentimento único por momentos ou objetos que não fazem sentido se separados de seu interlocutor. Para entender a saudade, precisamos prestar atenção naquele que vos fala e acreditar em cada palavra, em cada sentimento colocado para relembrar dela. Quando alguém compartilhar essa informação com você, sinta-se honrado, ouça e respeite aquela história.
Tudo isso aconteceu comigo depois que conheci uma figura que vamos chamar de El Capitán. Nunca soube o seu real nome. Nunca soube qual o seu passado, onde morava, onde cresceu. Ele apenas me entregou a informação mais valiosa que alguém poderia passar: uma história.
Tudo começou quando eu estava deitado na areia quente da praia de Malagueta, em Málaga. Naquele verão que torra a pele de qualquer pessoa. Um calor que nem nos dias mais quentes no Brasil eu poderia me recordar. Um lugar curioso onde a areia, ou pedrinhas, estavam fervendo em pleno meio-dia e a água do Mediterrâneo extremamente gelada.
Deitado nesse calor, em uma tarde de sexta-feira, passa um senhor vendendo bebidas. Ele se arrastava, mal levantava os pés para seguir adiante, mas gritava “bebidas” em pausas curtas. Sua pele era de um marrom queimado do sol, as roupas que o protegiam de queimaduras estavam molhadas de suor, e não deixava o isopor encostar no chão uma só vez. Nos duzentos metros que pude acompanhá-lo até a nossa chegada, ele parou apenas uma vez para secar o suor da testa.
Vários ambulantes vendiam souvenirs e bebidas na praia. A concorrência era grande. Alguns desses vendedores eram refugiados de países africanos, que tinham aquele ofício como sua única fonte de renda. Foi isso que ouvi de um casal de franceses ao meu lado que comprava uma canga de praia. O vendedor, que eu não consegui compreender de onde era exatamente, fugiu de seu país em busca de melhores condições, mas gostaria de trazer toda a sua família para a Espanha um dia.
Quase me deixei levar pela conversa alheia e esqueci daquele pequeno senhor que parecia carregar o mundo nas costas. Eu e minhas duas amigas o chamamos.
“El Capitán! Como posso ajudar vocês?
“Quero uma coca e duas águas”
“Não vou ter mais refrigerante, apenas água. Disculpe, capitán.”
“Então me veja três águas.”
“Fica quatro euros e cinquenta.”
“Vale, aqui está o dinheiro. Me diga, por que me chamou de El Capitán?”
“Pela sua tatuagem, eu vi de longe você pela tatuagem. Lembro-me de quando era jovem e tinha o meu próprio barco, você sabe navegar pelos mares?”
“O senhor foi marujo então?! Deve ter histórias incríveis para contar sobre essa vida. Eu não tenho um barco ainda, comecei pelas tatuagens, mas tenho uma relação de amor com as águas. Pelo jeito o senhor também.”
“Tenho, Capitán, isso é uma vivência que não posso excluir e nem sequer deixar de pensar um minuto. Hoje toda aquela vida ficou para trás, eu larguei o mar depois que sofri um acidente a bordo. Penso naquele dia até hoje, o rumo da minha vida mudou quando tive o acidente.”
“Mas teve histórias boas também, não? As histórias de alegria no alto mar compensam uma história ruim.”
“Não essa história… preciso continuar com a minha caminhada. Tenho mais algumas águas para terminar de vender, mas amanhã passo aqui no mesmo horário. Se estiverem com sede já sabem quem procurar.”
“Procuramos o El Capitán.”
“Por supuesto!”
O que será que aconteceu com aquele senhor para ele largar o mar e não querer mais se envolver com um ambiente tão lindo? Criei um filme na minha cabeça sobre como alguém abandona uma vida que tanto amou. Que tipo de barco aquele senhor comandava, será que ele foi da Marinha Espanhola, ou será que foi pirata? Só pode ser isso, deve ter feito tanta atrocidade no mar que se redimiu perante às autoridades e nunca mais quis se envolver nesse tipo de ilegalidade. Por que tenho curiosidade em saber isso? O que a vida de um senhor, que se via no mar em sua mocidade e agora vende bebidas na praia de Málaga, tem de comovente? Voltarei amanhã no mesmo horário e esperarei no mesmo lugar, como se eu fosse as mulheres dos marinheiros de primeira viagem que esperavam os seus amados no cais.
Mas eu iria sozinho dessa vez, a Bianca e a Sarah não vão poder ir mesmo. Elas perceberam meu interesse no desfecho, mas não perguntaram nada. Eu não falaria também, a intimidade dessa história contada pelo senhor para mim não foi à toa. Qual a probabilidade de alguém me contar uma experiência íntima que mudou toda a sua vida por completo?
Não costumo compartilhar histórias intensas facilmente. Faço quando tenho muita intimidade, mas aquela história de abandonar o mar tem algo por trás. Fico hipnotizado ao olhar aquela imensidão, quando meu momento chegar de navegar em um barco, não pensarei duas vezes.
Claro que não vou como pirata nem como capitão da marinha. Talvez eu esteja errado sobre a vida daquele senhor.
Cheguei no mesmo lugar, sozinho agora, na espera daquele homem que a história tanto me fascinou. Como ele era pontual, o vi com as mesmas roupas e o mesmo caminhar de ontem. Sua caminhada tinha cadência e, naqueles duzentos metros que o vi, parou duas vezes para vender. Será que as pessoas tinham a mesma curiosidade que eu em sua história? Observei ele de longe e sua simpatia não ultrapassou a intimidade dos clientes. Também não vi nenhuma pessoa com uma âncora no braço parecida com a minha.
Naquela passada lenta e contínua ele me viu e caminhou em minha direção.
“El Capitán! Como é bom vê-lo novamente! Onde estão as suas amigas?”
“Elas tinham aula de espanhol hoje, resolvi vir sozinho.”
“Qué bueno! O que vai ser hoje? Tenho coca ainda.”
“Quero uma.”
“Sabe que me simpatizei com você, ver a sua tatuagem ontem me trouxe muitas memórias boas.”
“Você me disse.”
“Sério?! Estou me tornando a pessoa que menos queria ser, a que esquece das coisas. Desculpa, meu jovem, a velhice chega para todos.”
“Sei, minha hora vai chegar também.”
“Por isso aproveite, Capitán. Vou te contar que fui capitão de uma frota de barco de pesca na costa marroquina.”
“Estava tentando imaginar ontem de onde você era e que tipo de capitão foi na sua juventude.”
“Qual foi o seu palpite?”
“Tenho até vergonha de falar.”
“Foi tudo, menos pescador?”
“Pirata ou capitão da Marinha Espanhola.”
“Posso me sentar com você para contar um pouco mais sobre o que é ser capitão?”
Não esperava essa reação. Nem sabia se ele estaria pela praia no mesmo horário, imagine poder se sentar ao lado de um senhor que foi capitão. Barco de pesca é melhor que uma história de pirataria.
“Você tem uma imaginação daquelas, Capitán”, ele disse.
“Sou exagerado nas histórias. Eu só não quero que você perca vendas na praia, mas fique à vontade para ficar aqui.”
“Tenho mais quatro garrafas de água para vender e clientes habituais que vêm todo verão, vendo mais rápido que qualquer pessoa na praia.”
“Carisma é o que não falta no senhor, qual o seu nome?”
“El Capitán.”
“Também?”
“O verdadeiro.”
“De onde você é?”
“Boa pergunta, sou uma mistura de cada canto.”
“Mas em algum lugar você nasceu.”
“Claro! Da mesma maneira que um dia tive pai e mãe.”
“E por que você me chama pelo seu nome?”
“Quando encontro um capitão, vejo de longe essa pessoa. Você é um capitão que ainda não foi para o mar. E nem precisa ser um capitão de águas ou um pescador como eu fui. Ser capitão é um título nobre para aqueles que sabem liderar e sabem lidar com situações adversas. E o mais importante: é leal perante aos seus marujos. O que está escrito na sua tatuagem?”
“Eu sou o capitão da minha alma.”
“Viu como eu nunca erro, você até marcou isso na sua pele. Você é um capitão antes mesmo de saber disso. Antes dessa tatuagem.”
“Quem sou eu para contrariar você, que viveu dezenas de anos a mais que eu e conhece tudo o que esse mundo tem a oferecer.”
“Conheço pouco do mundo, naveguei apenas pelo Mediterrâneo e uma parte da costa do Atlântico na África. Entretanto, vi muita coisa enquanto pescava por dias em alto mar. Tive a oportunidade de liderar a maior frota pesqueira no norte da África nos anos 1970, aconteceu um estouro na pesca da sardinha e fui com a minha frota, e mais outros barcos, para o mar. Foi um sucesso sem tamanho. Nunca estive à frente de tantos marujos. Foi uma aventura inesquecível. Depois tive mais três ou quatro pescarias e encerrei minha época no mar.”
“Devido ao acidente que você me contou ontem?”
“Me marcou muito o que aconteceu no mar. Não sei até hoje como aconteceu nem o motivo, acredito que foi a nossa ganância em pescar tantos peixes de uma só vez e as águas decidiram nos castigar pelo excesso. Verdade que fizemos muito dinheiro, mas a perda de um marujo dois meses depois de toda aquela abundância não valeu a pena.”
“Você acredita nesses fenômenos?”
“Olha, Capitán, não tenho posses hoje em dia. Moro com minha esposa, minha filha e meu neto a vinte quilômetros de distância de Málaga e venho diariamente vender na praia, mas uma coisa que aprendi como capitão foi respeitar o mar. Aprendi a respeitar o mar do modo mais difícil: pelo sofrimento. Ele não tem a obrigação de te respeitar, mas temos a obrigação de respeitá-lo. Sou muito ligado ao que acontece com o mar, com a pesca, e não me sinto confortável em ver o que se passa. Hoje a pesca é dez vezes maior que na minha época de ouro, como você imagina que os oceanos estão reagindo a tudo isso?”
“Capitán, você está certo. Você sabe o que acontece no Camboja? Os pescadores usam redes elétricas no mar. Eletrocutam toda a vida marinha para aumentar o volume de peixes. Fora os peixes, eles capturam cavalos-marinhos, tartarugas, lulas, pequenos tubarões. Os pescadores, vamos dizer os tradicionais, não conseguem acompanhar essa atrocidade industrial. Não sobra nada para eles.”
“Claro, Capitán, essas pessoas vão aprender como eu. Com o sofrimento eterno…”
Sua indignação era visível quando falava sobre os mares e o que nós, seres humanos, fazemos com ele. Um homem na casa dos seus setenta anos conhecia bem a vida, passou por situações que não posso imaginar. A ligação dele com o mar é inquebrável, em nossa conversa ele não olhava para mim, salvo alguns momentos, mas sempre se mantinha fixado no Mediterrâneo. O que me intrigava era o interesse que ele ainda tinha pelos mares mesmo depois do incidente em que esteve presente. O marujo que foi perdido em umas de suas jornadas, quem será essa pessoa que também fez parte disso? Me senti tentado em perguntar, mas, por mais que a conversa estivesse interessante, não quis atravessar essa linha tênue. Eu poderia nunca descobrir se fosse direto demais. A história de um homem que abandona a sua paixão, mas nunca deixa de pensar nela e até mesmo morar perto dela, deveria ser escrita em livros.
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“Capitán, preciso seguir viagem e terminar de vender essas poucas garrafas que me restam, hoje prometi para o meu neto que iríamos ao teatro de rua. Mas amanhã estarei aqui novamente, com meu isopor cheio.”
“Você nunca tira dias de folga?”
“Era raro eu fazer isso no verão, mas o peso da idade me fez tirar às segundas para descansar. Até logo! Capitán, acredito que vamos nos ver mais.”
“E continuar com as histórias sobre os mares.”
Não deixo de ir à praia nem que chova amanhã, quero saber como esse acidente mudou o rumo da vida de um homem. Na volta para casa fiquei com a nossa conversa inteira na cabeça sobre o que é ser capitão. Sobre nobreza, sobre lealdade, sobre respeito. É de meu interesse estar na melhor forma para ser um capitão, não necessariamente de um barco, mas alguém pronto para lidar com as adversidades. Será que vou aprender no sofrimento como El Capitán? Quando ele se levantou para continuar o restante das vendas, dava para ver sua dificuldade em se locomover. Sua pele é de alguém que brigou muito com o sol, que sentiu as durezas do trabalho. Não era uma vida fácil. Imagino que precisaria de alguns meses para ele me contar sua biografia completa.
Na volta da praia, encontro Bianca na Plaza de la Merced.
“Onde você estava? Eu e a Sarah estamos tentando falar com você há três horas!”
“Meu celular acabou a bateria, estava na praia.”
“Isso eu sei, foi sozinho?”
“Fui, mas não estava sozinho.”
“Quem é a menina que foi com você?”
“Sabe o El Capitán?”
“O senhor que vende bebidas na praia? Sei.”
“Estava com ele, ficamos conversando por uns quinze minutos.”
“Conversando sobre o quê?”
“Sobre a vida no mar. Eu estava interessado desde ontem em sua história, quando o encontramos e ele me chamou de El Capitán.”
“Mas por que isso te interessou?”
“Não sei, talvez seja a curiosidade em saber como alguém que é apaixonado pelo mar, nunca mais ousou em pisar nele novamente. Ele trabalha perto do mar, mora perto do mar, mas nunca mais entrou em um barco. E conversa sobre isso com propriedade. Falamos até sobre pesca hoje!”
“Então seu date foi o pescador?”
“Ele quase me contou sobre o acidente que o fez largar essa vida. Mas amanhã ele vai estar na praia de novo e vou sentar no mesmo lugar, na mesma hora. Ele nunca se atrasa.”
“Como você sabe que ele vai estar lá?”
“Porque ele disse que sua folga é só na segunda e hoje ele passou no mesmo horário que ontem, sem um minuto de erro.”
“Eu e a Sarah vamos também, espero que isso não seja um problema para você.”
“Para mim não, espero que ele não fique intimidado com vocês. Só não vão estragar o desfecho da história, ele nem me falou o seu nome. Disse para eu chamá-lo de El Capitán.”
“Mas ele não te chama disso?”
“Sim, são duas pessoas se chamando de Capitán em todo início de conversa.”
“Curioso isso.”
“Curioso que uma pessoa se abra desse jeito para um desconhecido na praia.”
Sarah enrolou o braço no meu e seguimos para a minha casa enquanto ela me contava como foi sua aula de Espanhol pela manhã.
Passamos o domingo inteiro na praia e nada do Capitán passar. O que será que aconteceu com ele? O dia estava lindo e a praia cheia de gente, era um dia para vender muita bebida. Ele mesmo me disse que nunca ficava um dia sem ir trabalhar, salvo às segundas-feiras. Não sei o nome dele, não sei onde mora, não tenho nenhuma informação para checar se ele está bem. Fiquei com as meninas até o pôr-do-sol, mas, logo antes de nos levantarmos, passou um rapaz vendendo bebidas.
Talvez alguém conheça ele, pensei e o chamei.
“Tenho mais uma cerveja e uma água, não sobrou muita coisa hoje.”
“Me vê a água então.”
“É para já!”
“Obrigado. Uma pergunta, você conhece um senhor que sempre vem vender na praia? Ele deve ter uns setenta anos, sempre de camisa branca de manga comprida e a pele bem escura do sol.”
“Conheço! Na verdade, não sei o nome verdadeiro dele, mas é o único senhor nessa faixa etária que ainda atua com vendas na praia. Então, ele mora em um pueblo perto de Mijas. Sei quem ele é porque vive perto da casa da minha avó. Por que tanto interesse nele?”
“Ele sempre foi simpático comigo e, desde que comecei a vir à Malagueta, compro com ele. Nunca o vi faltar ao trabalho, fico até impressionado com sua força naquela idade avançada debaixo desse sol forte.”
“Realmente, ele nunca para de trabalhar, sempre vem até Málaga e nunca volta com produto de sobra. Se ele faltou deve ter algo relacionado com o seu neto. Ele vive indo ao hospital.”
“Não sabia disso.”
“E como você saberia?”
“Ele me contou sobre quando foi pescador e…”, não dei continuidade sobre o acidente, o assunto estava ficando muito profundo.
“E…”
“… e era um dos melhores pescadores da sua vila.”
“Ouvi histórias da minha avó sobre ele, mas cuidado, não crie laços profundos com ele.”
“Ele me parece bem lúcido e interessante, não vejo hostilidade nele.”
“Seus pensamentos não batem bem.”
“Como ele se chama?”
“El Capitán.”
“Ele me disse a mesma coisa.”
“Então, não estava mentindo.”
“Mas isso não é nome.”
“Não mesmo, mas quando eu disse para você ter cuidado é por causa dessas excentricidades. Só conhecemos ele por El Capitán e as histórias que se passam na vila. Amigo, preciso ir. Vá curtir Málaga e não se envolva com esse lunático.”
Nada estava certo naquela história. Seu nome era desconhecido e sua fama é de louco na vila, o mais estranho foi ele não ter aparecido na praia aquele dia. Comigo, sentado na areia naqueles quinze minutos, o homem foi um cavalheiro, não se mostrou perverso e nem louco. Parecia que cada palavra que ele usava era feita sob medida para a frase.
“Achei aquele vendedor sinistro”, disse Sarah.
“Ele ficou desconfortável quando você perguntou sobre o senhor”, disse Bianca.
“Acredito que foi desnecessário ele ter agido daquela forma, entretanto, algo deve existir por trás daquela ‘leve’ hostilidade. As informações não batem na equação. De um lado é um esquisito da vila, que ninguém conhece o nome verdadeiro, que é, aparentemente, chamado de louco pelos moradores. Do outro temos o contador de histórias, um velhinho que nunca deixou de trabalhar.”
“Essas vilas são cheias de histórias, qualquer movimentação estranha entre um morador vira assunto para a semana inteira. Fiquei triste por ele ter que ir ao hospital levar o neto. Será que ele não veio por essa causa?”, disse Bianca.
“Realmente não tenho ideia, mas algo aconteceu na vida do El Capitán para que as pessoas o julguem desse jeito. Não faz sentido um senhor daqueles, inofensivo, ser ofensivo. Não sei se vamos descobrir o que realmente aconteceu com ele neste domingo. Amanhã trabalho e não venho à praia”, eu disse.
“Se o encontrar novamente, talvez ele se abra mais com você”, disse Sarah.
“Pode ser, mas não posso ficar pensando nisso. Talvez ele nunca mais volte. Vamos comer churros?”
A história daquele rapaz cheira a falcatrua. Parece história de vila de pescador e as lendas que rodeiam o lugar. Isso me faz lembrar uma vez, em Florianópolis, quando ouvi as histórias dos pescadores enquanto fazia uma pesquisa de campo. Trabalhar com biologia me dava a oportunidade de pesquisar em quase todo o litoral brasileiro. Fiquei estarrecido por uma história que me contaram na Barra da Lagoa, um vilarejo na ilha, sobre um morador de lá. Era um recém-chegado, um europeu que amava o Brasil, mas que escondeu um segredo por muito tempo.
Aconteceu um ano antes da minha chegada em Florianópolis. Os pescadores, com quem fiz amizade, me contaram sobre o caso de agentes da INTERPOL sobrevoarem o pequeno vilarejo, onde nunca acontecia nada, em busca de um traficante de pedras preciosas. Durante um ano e meio esse alemão morou na ilha, se conectou com a comunidade local e fez amizade com todos os moradores. Não era raro ele fazer ceia em sua casa com os amigos locais.
Até aí, tudo bem. Muitos europeus moram no Brasil. Tenho amigos de várias partes da Europa que decidiram migrar para lá.
Deduzi serem agentes da INTERPOL porque os nativos que me contaram essa história me disseram que não entendiam nada do que aqueles homens falavam. Qual outra polícia faria esse trabalho em outro país? Não conheço outra.
O gringo sempre presenteava os locais com objetos caros, pagava cirurgia para quem precisava, comprava presentes para as crianças. Ele sabia surpreender as pessoas, além de falar muito bem português. Mas ninguém sabia nada sobre ele, apenas que vendeu seu negócio na região de Stuttgart, na Alemanha, e resolveu se mudar para o Brasil.
Depois de alguns meses morando na vila de pescadores, o alemão começou a receber visitas de gente estranha, como disse um dos pescadores. O clima ficou tenso quando o filho de um deles, um menino de oito anos, viu um desses homens com um rifle na mão de noite.
Os boatos começaram a circular, a movimentação entre pessoas estranhas começou a ser frequente. As festas para a comunidade, os presentes, todos os mimos, cessaram. O alemão passou a ficar recluso em casa. A senhora Nandinha resolveu passar na casa dele para entregar um pão de frutas, ele atendeu com a cara desfigurada, barba comprida e roupa suja. Agradeceu rápido a generosidade dela e entrou de volta na casa.
Um dia a polícia cercou o vilarejo. Ninguém entendia nada, mas os pescadores sabiam ter a ver com aquele alemão. Parece que ele sabia que aqueles homens chegariam e fugiu. Os moradores foram interrogados sobre o comportamento daquele homem, que à primeira vista foi um anfitrião exemplar, e o que ele fazia na vila, qual era a sua rotina, quem o visitava.
Ninguém sabia nada dele, apenas que seu nome era Klauss, mas depois ficaram sabendo que não existia nenhum Klauss, que aquele homem estava na mira da polícia internacional há dez anos. Ninguém nunca soube o que ele fazia ali, ou quais eram os seus crimes. A polícia foi breve quanto a esse assunto.
Até que na semana seguinte, o jornal mostra a foto do Klauss, ou melhor, Jeremy, um ladrão de pedras preciosas que roubou o colar da princesa da Espanha. Um ladrão internacional escondido entre os pescadores, claro que ninguém o procuraria no Brasil. Ele nunca foi para aquelas terras antes, o que era admirável, porque ele falava muito bem português.
Agora, todo gringo que passa por aquela vila de pescadores, e acaba ficando, é visto com desconfiança. As pessoas daquele lugar se sentiram usadas por ele, pelo seu carisma e pelos seus mimos.
Eu não vivenciei essa história, foi o que um pescador me contou enquanto comprava tainha dele. Outro me contou uma história totalmente diferente, que o alemão matou pessoas importantes. Não sei em qual história acreditar, mas uma coisa é certa nesse caso: a pessoa era alemã ou fazia parte do disfarce a personificação de um alemão, podia ser um holandês ou austríaco, nunca se sabe. Não me preocupei com o que pensariam de mim ali, eu não era ninguém de fora, era “apenas” um biólogo que observava a vida marinha naquela terra, estava mais preocupado com os pinguins que chegavam na praia do que com pedras preciosas.
Segunda não aconteceu nada…
Terça choveu…
Quarta fez sol e o El Capitán não apareceu…
Quinta a mesma coisa…
Tudo que passou era história de pescador, minhas idas à praia não se passavam de calor e ilusão. Tudo poderia ter acontecido com aquele senhor, talvez aquele vendedor estivesse certo sobre ele. O cara era um louco, minha inclinação sobre esse fato se dava pelos meus sentimentos que eu jogava contra o El Capitán, que esteve presente naqueles quinze minutos, que me contou sobre o que era ser capitão, sobre suas experiências, ele me encantou com sua relação com o mar. E agora decide ir embora, sem deixar um desfecho sobre tudo aquilo.
A vida era dele, eu não tinha que me preocupar com isso ou pensar sobre suas histórias saudosas com o mar. A saudade de épocas que não passam de memórias. Entretanto, a raiva que eu tinha não se sobressaia com a simpatia e o querer bem àquela pessoa. O que aquele outro vendedor falou, pode não significar nada. Talvez quem era visto com maus olhos era aquele cara estranho, que ficou desconfiado quando perguntei sobre o senhorzinho que sempre caminhava de branco pela praia com o seu isopor.
A vida coloca algumas pessoas em nosso caminho para dar significado sobre o que é o amor e outras para nos causar dúvidas. É como se tivesse o bem e o mal ao seu lado cochichando em seus ouvidos.
Depende da minha pessoa julgar cada um. Um trouxe suas saudades do tempo no mar, o outro o chamou de louco. Qual a credibilidade de um crítico sobre o criticado? Não posso acatar as palavras de uma pessoa que não conheço, apenas conheci a habilidade de um contador de histórias que se mostrou tudo, menos ser um louco.
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Os dias passaram, nunca mais vi El Capitán na praia, esse assunto se passava cada vez menos em meus pensamentos. Curti a cidade sem pensar em marinheiros, piratas, vendedores de bebidas e lendas urbanas. Me senti dentro de uma história de pescador, confuso e com muitas versões. Tudo sobre aqueles quinze minutos de conversa foi se apagando, até que, na minha última semana na cidade, avistei ele, o amante dos mares, com a mesma roupa branca e a mesma cadência de passos. Até então ele não tinha me visto ou fingiu não me ver, mas o chamei mesmo assim. Se aquele fosse o nosso último encontro, que fosse um adeus apropriado. Não havia a necessidade de histórias e outros contos. Já me servia uma troca de cumprimentos entre capitães.
“El Capitán!”, ele disse quando me avistou.
“El Capitán! O que temos hoje para beber?”
“Tenho soda, coca, cerveja e água.”
“Quero uma soda dessa vez.”
“Qué bueno!”
“Aqui o dinheiro.”
“Obrigado, Capitán.”
“Eu que agradeço. Nunca mais vi o senhor por essas bandas, fiquei esperando para mais histórias sobre os mares.”
“Ah! Capitán, não foram semanas fáceis.”
“Bom, se o senhor quiser conversar, estarei aqui até às seis horas. O dia está bonito.”
“Bonito e lucrativo! Bem que eu gostaria, quem sabe não nos encontramos mais uma vez. Agora estou com o isopor cheio e preciso urgentemente vender essas bebidas hoje. Meu netinho está internado no hospital.”
Seus olhos encheram de lágrimas.
“Capitán, não quero o mesmo sofrimento que passei décadas atrás agora, eu já aprendi a minha lição. Não consigo suportar a dor em perder outra pessoa, ainda mais uma criança que tem a vida inteira pela frente”, ele disse.
“Não sabia disso, Capitán. Não conseguiria usar nenhuma palavra para passar o que eu gostaria de dizer, mas o seu netinho tem sorte em tê-lo como avô.”
“A vida é cheia de surpresa, não é mesmo? Surpresas boas aparecem na mesma velocidade que as ruins e seguimos o caminhar. Vou continuar com as vendas, meu jovem. Espero ainda vê-lo pela praia. Até logo! Capitán.”
Ele caminhou a passos lentos, passos sofridos de quem sentia o peso da responsabilidade nas costas. Um homem que, em circunstâncias adequadas, estaria aposentado e a sua única obrigação seria levar o neto ao teatro de rua, brincar com ele, trabalhar em um ofício menos desgastante. Não sei o que esse homem fez no passado para ser taxado de louco, para levar essa titularidade com tanto afinco em sua aldeia, mas o seu desespero era genuíno.
Deixei as minhas coisas na areia e corri até ele.
“Capitán, você tem quantas latas ainda?”
“Umas trinta.”
“Vou comprar tudo do senhor, mas, em troca, gostaria que você descansasse comigo agora. Nem que seja por uma hora, que tal?”
“Não brinque comigo, é sério isso?”
“A mais pura verdade, o senhor aparenta estar exausto.”
“Pois estou! Na verdade, estou desmoronando”, ele tremia.
El Capitán era um ser genuíno, que desabou no choro quando o ajudei a carregar o isopor até as minhas coisas. Abri duas sodas e lhe entreguei setenta e cinco euros.
“Por que você fez isso, Capitán?”
“Pela sua história, pelo seu amor ao mar, pela nostalgia em lembrar de uma época em que o senhor aparentava ser muito feliz. Não tenho um motivo definido, talvez apenas me simpatizei por você, ali, naquele sol carregando um isopor, todo elegante.”
“O trabalho chama a gente, não posso culpar a minha falta de esforço ou as minhas condições que não me são favoráveis.”
“Um gesto nobre da sua parte. Se me permite perguntar, o que o seu neto tem?”
“Uma complicação no coração, ele vai precisar de um transplante de coração. Estamos arrasados em casa.”
“Foi por isso que você não apareceu semana passada na praia?”
“Como você sabe?”
“Estive por aqui e não vi mais o senhor.”
“Depois que fui levar o meu netinho para o teatro de rua, ele passou mal no meio da noite e corremos para o hospital.”
“Descobriram nos exames que ele precisa de um transplante de coração?”
“Não, os médicos já desconfiavam de um problema cardíaco congênito, mas levaram dias para descobrir. Agora nos resta esperar na fila para o transplante.”
“Desejo o melhor para o seu neto. Você conta suas histórias da sua época de capitão para ele?”
“Sempre que posso. Ele adora histórias de mar, já leu o Lobo e o Mar umas cinco vezes.”
“E quantos anos ele tem?”
“Faz treze em quinze dias.”
“E as histórias sobre sua época de ouro no Marrocos, ele sabe?”
“Sabe, contei tudo para ele. Sempre falo que devemos fazer o melhor para os mares para ele não voltar contra nós, como aconteceu comigo.”
“Essa parte da história o senhor não contou naquele dia.”
“Acredito que não, mas vou lhe contar o ponto onde minha vida deu uma reviravolta. Capitán, lembra quando lhe contei sobre a minha ganância de pescar cada vez mais e fazer muito dinheiro?”
“Claro que lembro.”
“Foi na época da pesca industrial, trabalhávamos muito, pescávamos em excesso, e foi nesse ponto que começamos a destruir os mares.”
“Mas pescar é uma atividade legal, não?”
“A mais linda e nobre de todas as profissões, mas, quando pegamos mais do que conseguimos consumir, os mares desfalcam; destruímos o ecossistema marinho; matamos não apenas os peixes, mas os corais, os tubarões, as baleias, aniquilamos tudo. Esse é o grande problema da pesca industrial. Você não consome peixe?”
“Sempre que posso, e quando vou para a praia compro dos pescadores.”
“Claro, também faço isso. O peixe estraga facilmente e é jogado toneladas e toneladas no lixo, porque não podem ser consumidos. Fiz parte disso e paguei o preço. Fui o maior dos gananciosos daquelas pescas e fui o responsável pela morte de um marujo: o meu irmão. O único irmão que a minha mãe me deu, um rapaz de quinze anos quando aconteceu o acidente. Como irmão mais velho não pude evitar.”
“Não imaginava isso, não sabia que o senhor perdeu o irmão para os mares.”
“Eu sempre soube administrar um barco, até nas piores tempestades. Os pescadores sempre tiveram firmeza em se juntar a mim no meu barco, porque sabiam que dali sairia muito peixe e voltariam com segurança. Até eu perder o meu irmão para o oceano.”
“Esse foi o motivo que você nunca mais pisou em um barco?”
“Nunca mais fui a mesma pessoa, sempre tenho pesadelos com meu irmão, no momento exato em que ele cai no mar e seguro o seu braço. Não havia motivos dele ir para o fundo, eu o segurava, mas algo o puxou. Não pode ter sido um tubarão, não há explicação. Para mim, foi um sinal, eu tinha que parar com aquela pesca imediatamente. Nos meus pesadelos acordo com os pés na areia. Eu não consigo entender isso. Ele me chama, vou até ele e de repente estou na praia.”
“Capitán, você é sonâmbulo pelo que está me contando?”
“Não acontece sempre, minha filha fica desesperada quando isso acontece. Na época do acidente acontecia todo mês, isso quando eu não acordava gritando. O acidente sempre está envolvido. Há quarenta anos que tenho esses pesadelos. Na vila para onde me mudei sou taxado como louco. Há quem acredite que sou um bruxo, isso porque o filho de um renomado médico me viu caminhando de pijamas em direção ao mar. O mar está a dez quilômetros de distância de onde estou, não é normal isso. Mudamos da praia para eu não acabar afogado.”
“E você foi direto para a praia, mesmo a dez quilômetros de distância?”
“Capitán, se eu estivesse em Madri faria a mesma coisa, mas, naquele caso, fui encontrado pela minha filha antes da metade do caminho.”
“Que louco. Nunca conheci ninguém assim.”
“Isso acontece raramente agora, mas ainda assim incomoda muita gente. Nunca expliquei para ninguém, nessa vila para onde me mudei sou visto como maluco. Ainda para piorar, falei que meu nome era El Capitán”, ele começou a dar risada.
“Perguntei para um rapaz aqui na praia se ele te conhecia.”
“Quem realmente importa para mim hoje é o meu netinho. Ele é muito jovem para partir desse mundo, não fez nem quinze anos ainda, a idade do meu irmão quando se foi. E essa pessoa me conhecia?”
“Sim, disse que você morava na mesma vila da avó dele e como você era visto como louco por aqueles lados. Não consegui acreditar em nada que saia da boca daquele vendedor, não batia com a descrição que eu mesmo tinha sobre o senhor.”
“As pessoas não sabem sobre o passado dos outros e vivem a base de julgamentos. Hoje, além de ser avô e vendedor de bebidas, sou bruxo nas horas vagas.”
“Você sente falta do seu irmão?”
“Todos os momentos, vejo ele no rosto do meu neto. Os dois têm a mesma feição. Tem os mesmos traços fortes que meu pai tinha.”
“Continue contando para ele as histórias de sua juventude, conte mais sobre o seu irmão também. Mostre uma versão do seu irmão que apenas você conhece, talvez assim vocês três possam estar mais próximos e seus pesadelos possam parar. Já tive momentos de pesadelos e foi isso que fiz, aceitar o que aconteceu comigo. Você ainda vai ter a ajuda do seu neto para isso.”
“Ele é um capitão como nós. Sempre está rodeado de crianças e nunca faz mal a ninguém, parece meu irmão na escola. Vejo os dois como uma única pessoa, por isso tenho medo desse problema em seu coração. Se eles forem a mesma pessoa? Significa que ele vai falecer com quinze anos também? Eu já fiz as pazes com os mares, perdi a minha maior preciosidade para ele. A causa disso foi a minha ganância, é o que sinto.
“Quem sabe. Talvez você esteja certo, talvez não. Se remoer sobre um assunto que não tem mais volta não vai te fazer bem.”
“Você tem razão, El Capitán, as pessoas sempre falam isso para mim. Mas é algo mais forte que eu.”
“Pense no seu neto, o que fará depois que ele melhorar?”
“Queria levá-lo para conhecer a minha terra natal, sempre conto sobre lá, mas nunca o levei para conhecer a terra onde o seu avô nasceu. Quero levar ele e a minha filha.”
“Você é um ser ímpar. Me faz um favor, quando o seu neto melhorar, me mande uma mensagem? Vou anotar o meu telefone nesse papel, se você não souber mandar mensagem, peça à sua filha para te ajudar. Eu realmente gostaria de saber se ele está bem.”
“Como um capitão de verdade, sempre mostrando as suas qualidades nobres. Você não conhece o meu neto, mas não é por isso que se importa menos com ele.”
“O senhor mesmo disse, Capitán, reconhecemos um capitão de longe. Se você é um capitão, se o senhor me reconheceu como um, quem sou eu para negar o capitão que o seu neto é depois de você me falar sobre ele?”
“Prometo que não esquecerei de lhe comunicar.”
“Essa é a minha última semana aqui, não sei com que frequência vou conseguir vir à praia, espero que não seja o nosso último encontro, mas se for, não vou deixar de lembrar esse momento.”
“Não creio! Acreditava que você estava morando em Málaga. No que o senhor trabalha?”
“Sou biólogo e escritor. Espero escrever uma história do nosso encontro um dia.”
“Eu adoraria ler, faz isso mesmo! Escreva, quem sabe eu não leio um dia.”
“Me passe uma mensagem nesse número. Quando escrever te envio. Tenho um tradutor para o Espanhol, amigo meu, que vai adorar fazer esse trabalho.”
“Você não é espanhol?!”
“Eu sou brasileiro.”
“Passei todo esse tempo acreditando que você era espanhol, um rapaz nascido em Madri.
“Vou levar isso como um elogio, Capitán. E fico esperando a sua mensagem.”
“Espere que mandarei, estou maravilhado até agora.”
“Vamos indo?”
“Vamos. O que você vai querer fazer com todas essas bebidas? É o seu direito tê-las, você comprou todas.”
“Verdade! Tenho direito de fazer o que bem entender com elas. Capitán, quero que o senhor as leve e venda tudo amanhã.”
“Não posso aceitar essa bondade, já é muito para mim.”
“Mas é isso que o senhor merece. Aprendi muito ao seu lado, Capitán.”
“Obrigado, vai fazer diferença lá em casa.”
“Eu sei, boa viagem de volta, Capitán.”
“Aproveite o resto da semana na cidade, Capitán. A cidade fica linda no verão.”
“Estou apaixonado por aqui.”
“E o Mediterrâneo é mais bonito ainda.”
“Transborda paz.”
Nossa conversa terminou com os dois encarando o pôr-do-sol na Praia de Malagueta.
Voltei para a minha rotina no Brasil como biólogo, minha temporada na Espanha como pesquisador foi curta, mas rica em vivências. Mantive contato com meus amigos de lá, mas nunca recebi uma ligação ou uma mensagem do El Capitán. Muito provavelmente aquele papel se perdeu nos ventos de Málaga, o que me restou foram aquelas conversas de pescador com um legítimo capitão. Foram quarenta anos de sofrimento com aqueles pesadelos com seu irmão. Foram quarenta anos de mutilação de pensamentos e culpa.
Entretanto, para a minha surpresa, cinco meses depois da minha volta ao Brasil, recebi uma mensagem com o prefixo +34. Um número desconhecido. Até então os números de telefone das pessoas com quem eu me comunicava na Espanha estavam salvos na minha agenda.
Era a mensagem de uma mulher, que escrevia em nome do El Capitán.
“Capitán, ¿cómo estás? Nunca dejé de pensar en nuestras conversaciones y en nuestro encuentro inusual en la playa. Como he dicho, un capitán reconoce a otro de lejos. Desde ese último encuentro ya no tengo mis ataques de insomnio e, incluso, la gente de mi pueblo ha empezado a tratarme con más respeto. A mí me parece que he dejado de ser el loco del pueblo. Sin embargo, lo que me gustaría comunicar es que no estoy maldito por mi pasado, mi nieto se hizo un implante de corazón y le quedarán muchos años de vida. Diez días antes del día en que mi hermano fue llevado a los mares años atrás, el hospital nos llamó para comunicar la noticia de que habían encontrado un donante compatible para mi nieto y programaron la operación en la misma semana. Sentí un alivio, una emoción tan fuerte como su nacimiento. Me sentí libre de mi maldición, me sentí libre de toda culpa. Tras el éxito de la operación, decidí aventurarme a pasar un día con un amigo pescador. Cuarenta años sin pisar en un barco, pero fue amor a primera vista. Parece que fue ayer cuando me subí a un barco cuando aún era joven. Espero que estés bien y me encantaría leer un relato tuyo algún día. Mi hija que teclea por mí, nunca aprendí a usar este aparato. Hasta pronto. Un abrazo, El Capitán”.
Senti alívio ao saber que El Capitán está em paz, melhor ainda foi a notícia que ocorreu tudo bem na cirurgia do seu neto. Não vou mais prorrogar essa história, há tempos quero escrever sobre isso. Minha motivação chegou com a mensagem de paz de um verdadeiro capitão.
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